segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - As Viagens do Vento (Colômbia)

De: Ciro Guerra. Com Yull Núñez, Marciano Martinez, Agustin Nievez e José Luiz Torres Leiva. Drama, Colômbia, 2009, 118 minutos.

Não é preciso muito mais do que meia hora para que As Viagens do Vento (Los Viajes del Viento) - obra do cineasta colombiano Ciro Guerra (do oscarizado O Abraço da Serpente) - conquiste completamente o espectador. Há um instante específico em que o taciturno menestrel Ignacio Carrillo (Marciano Martinez) chega a um povoado em que ocorre uma espécie de "rinha de sanfoneiros" em que o vencedor sairá com um prêmio em dinheiro - além do prestígio de ser reconhecido pela força não apenas do instrumento, mas também dos versos. Ocorre que Ignácio está aposentando a gaita. Mais do que isso: está empreendendo uma viagem ao norte da Colômbia para devolver o acordeão ao seu antigo mentor, com a ideia fixa de não mais tocá-lo, já que acredita ter sido objeto de algum tipo de feitiçaria em sua vida, marcada por desgraças e pela solidão. A vida de músico, de artista, afinal, não é fácil.

Quem convence Ignacio a participar da disputa de sanfonas é o jovem Fermin (Yull Núñez), que se junta ao trovador logo no início de sua jornada, com o desejo de ser um aprendiz na arte da sanfona. A batalha de gaitas é animada, divertida e irresistível: Ignacio identifica o ponto fraco de seu oponente, algo relacionado a algum tipo de bruxaria (e nunca é demais lembrar que o misticismo, o folclore e a religiosidade são elementos que naturalmente integram a obra de Guerra). Só que um nativo perder para um forasteiro não pega bem: o protagonista é atacado à faca pelo pai do derrotado em uma sequência tão tensa quanto artística. É salvo pela própria gaita, que impede o seu corpo de ser perfurado. Ao sair do local, precisa ir ao encontro de seu irmão Nine (Agustin Nievez), único na região capaz de consertar o instrumento. Mas há um porém: ele mora no topo de uma montanha.


Relatado assim, esse encadeamento de eventos pode apenas parecer aleatório, mas dá conta de uma série de elementos que envolvem o cinema do realizador (que também fez o espetacular Pássaros de Verão). O primeiro deles é o bucolismo inebriante que ecoa nas belas paisagens aéreas, que transformam a região de La Guajíra ela própria em uma espécie de personagem: que observa, que envolve, que acompanha. Que evoca grandiosidade. Os vários travellings e sequências filmadas em planos médios, em que se pode ouvir o barulho do vento ou dos curiosos pássaros, quase faz lembrar, em alguns momentos, o cinema de Terrence Mallick - mas sem as narrações em off que podem se tornar excessivas em algumas situações. Aqui prevalece o silêncio, o intercâmbio com a natureza, a paixão pela arte, pela música, misturada com a dureza e a rudeza dos moradores locais, capazes de realizar duelos de vida ou morte ao som do acordeão. É um legítimo mergulho na Colômbia mais rural e mais desconhecida, longe da urgência urbana e violenta e de denúncia de contrastes sociais, como a vista em obras premiadas como Maria Cheia de Graça (2004), por exemplo.

Esse na realidade é mais um daqueles casos de fiapo de história que serve para dar conta de uma jornada de redenção e de aprendizado, em que o veterano músico empreende um esforço para expurgar os seus demônios e traumas do passado, ao passo que o jovem representa a força da "novidade", que precisa passar por uma série de rituais para chegar a vida adulta (e não é por acaso que, lá pelas tantas, Fermin se envolve em uma cerimônia real no meio da floresta, em que encarna algum tipo de espírito metafísico que lhe certifica oficialmente para a música). É um filme que talvez não seja para todos os paladares: há uma fluência narrativa mais lenta, quase contemplativa, em que os raros momentos mais movimentados (como o já citado, da rinha), se intercalam com a longa viagem em meio a natureza selvagem e interminável - algo bastante parecido com o que fazem os protagonistas do livro Todos Os Belos Cavalos de Cormac McCarthy. Mas quem se aventurar pelo cinema de Ciro Guerra, desvendará uma Colômbia mágica, mística, quase onírica e que mais parece saída das páginas do conterrâneo Gabriel García Marquez. Talvez não seja por acaso.

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