Vida e morte. Riso e choro. Luz e trevas. Sonho e realidade. Abstração e materialidade. Um filme como A Excêntrica Família de Antônia (Antonia), de Marleen Gorris, nos permite uma série de inferências sobre essas palavras tão antagônicas quanto presentes em nossas existências. Mas não de forma filosófica ou excessivamente profunda e, sim, com uma fluidez vibrante, percebida nos gestos das personagens, nos modos de cada um, nos comportamentos - a começar pelos da própria Antônia (Willeke Van Ammelroy) do título. Trata-se de uma obra de grande sensibilidade, com um lirismo poético que salta aos olhos não apenas nas paisagens magníficas - algumas quase se assemelham a amplos paineis impressionistas, sempre com um comovente bucolismo "acinzentado" -, mas também em sua narrativa que dá tempo ao tempo, que descortina os acontecimentos sem pressa, conforme nos afeiçoamos das figuras que acompanhamos.
É uma história que atravessa três gerações de mulheres empoderadas - aliás, que vão se reconhecendo cada vez mais assim, conforme o tempo passa -, e que ocorre toda ela em uma pequena comunidade rural da Holanda, com todo seu provincianismo e costumes conservadores. Antônia está retornando para o local para o funeral de sua avó, 20 anos após ter saído dali. Ela vem com sua jovem filha Danielle (Els Dottermans) e já em algumas das primeiras sequências a gente percebe que a protagonista não vai se alinhar aos modos de vida ultrapassados daquele povoado. Como exemplo, quando o fazendeiro Bas (Jan Decleir) se interessa romanticamente por Antônia, ele argumenta que os filhos dele "necessitam de uma mãe" ouvindo como resposta "só que eu não necessito dos seus filhos". A resposta NA LATA pode parecer grosseira num primeiro momento, mas ela serve para estabelecer um tipo e paradigma que subverte as convenções e os padrões estabelecidos naquele local: o de que as coisas não são lógicas e que não acontecerão apenas porque tem que acontecer.
Isso não quer dizer que Antônia vá descartar qualquer tipo de relação com Bas - que se mostra, conforme o filme avança, em um sujeito amável e confiável. Antônia apenas não quer que alguém (nesse caso, um homem), determine o que ela irá fazer da vida dela dali pra frente. Ela é uma viúva e argumenta que também não precisa de um marido. Mas é uma jovem mulher, bonita, que tem desejos, anseios e objetivos, que serão demonstrados aos poucos, conforme o descortinar da película. Essa passagem de Antônia com Bas a meu ver resume uma das marcas desse belo filme que viria a ganhar o Oscar na categoria Língua Estrangeira na edição de 1996: a da capacidade de discutir os seus "assuntos", sem transformar a obra em um panfleto escancarado na cara de todo mundo. Distante daquela comunidade que parece ter um papel bem definido para as mulheres (a cena inicial, em uma espécie de bar, dá conta disso), Antônia pode ter alterado sua percepção do mundo. E, as poucos, começa a espalhar essas ideias pelo povoado, sempre com gentileza, com um sorriso no rosto, com empatia.
Não é por acaso que as pessoas que se aproximam dela são aquelas que convivem à margem da sociedade. E aquelas que passam a questionar a sua existência no lugar, ainda que indiretamente, representam instituições consolidadas como a Igreja e o Estado (encarnado num militar fascistoide que não hesita em atacar os habitantes e a estuprar mulheres e crianças, inclusive a própria irmã). Quando Danielle resolve que quer ser mãe, mas sem a existência de um marido, Antônia apoiará a filha. Assim como encarará com naturalidade as descobertas da mesma sobre sua sexualidade. Já a neta se apresentará como um prodígio intelectual e, como lidar com toda essa ânsia por conhecimento, em um mundo que nem sempre possibilita às mulheres este posto? São questões que vão surgindo na tela, que se mostram como desafios de temporalidade, em um universo em que a beleza e a graça se coloca como um contraponto à boçalidade e à rudeza. Mas não haverá limites na generosidade de Antônia, que fará de tudo para acolher aqueles que chegarem até ela.
Nesse sentido dá pra compreender de onde Jean Pierre Jeunet deve ter tirado uma de suas maiores inspirações para o clássico moderno O Fabuloso Destino de Amelie Poulain (2001). Ainda que o filme não seja tão colorido como o francês há um forte flerte com o caráter onírico, quase de sonho (especialmente na forma como Danielle percebe alguns acontecimentos) e também um otimismo latente - representado de forma máxima pela sequência em que quase todo o elenco surge transando ao mesmo tempo (afinal de contas, sexo é estado de êxtase, não?). A excentricidade de suas figuras - um filósofo pessimista, a neta superdotada, uma mulher que uiva em noite de lua cheia, a idosa caduca, o padre que questiona os dogmas, a amiga que ama ter filhos -, também forma um coletivo de figuras que nos remetes às personagens de Jeunet, eventualmente surpreendidas pelo absurdo, mas sempre persistindo diante das adversidades. Filme que rende na mesa de debates pela amplitude e pela ambiguidade de seus temas, A Excêntrica Família de Antônia está completando 25 anos de seu lançamento agora em setembro. E segue como um dos mais inesquecíveis representantes do cinema holandês. Vale conhecer. Ou revisitar.
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