terça-feira, 6 de outubro de 2020

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Pelo Malo (Venezuela)

De: Mariana Rondón. Com Samuel Lange Zambrano, Samantha Castillo e Nelly Ramos. Drama, Venezuela / Peru / Argentina / Alemanha, 2013, 93 minutos.

Se tem uma coisa que o cinema TAMBÉM nos proporciona é a oportunidade de nos aproximarmos de outros países e, consequentemente, de outras realidades, outras culturas. E o venezuelano Pelo Malo (Pelo Malo) - vencedor da Concha de Oro, no Festival de San Sebastián de 2013 -, consegue nos apresentar um bom recorte do contexto social de República Bolivariana capitaneada, à época, por Hugo Chavez, a partir de um fiapo de história. A trama nos joga para a periferia de Caracas, onde os contrastes sociais são explicitados já nas primeiras cenas - em uma delas o pequeno Junior (o sensacional Samuel Lange Zambrano) simplesmente entra no ofurô da casa em que sua mãe Marta (Samantha Castillo) realiza um bico como empregada. O tipo de pequena desobediência que dará conta da natureza transgressora do menino - algo que nos acompanhará, por sinal, durante toda a película dirigida por Mariana Rondón.

Samuel e Marta moram, afinal, na parte mais pobre da cidade. Uma espécie de condomínio popular em que diminutos apartamentos se acumulam, servindo de moradia para as camadas mais humildes do tecido social. Ainda que não tenha o pai presente - a verdade sobre o que teria ocorrido ao progenitor surge mais adiante -, Samuel mantém os seus traços e características fenotípicas, entre eles uma vistosa cabeleira negra (não chega a ser um black power, mas é uma melena de "respeito"). Só que Samuel não gosta dessa característica. Parece ter aprendido - talvez pela persistência na mídia em estabelecer o branco e liso como padrão de beleza -, que cabelo encaracolado não é bonito. Aliás, deseja com todas as forças alisá-lo e a necessidade de realizar uma sessão de fotos para as aulas que estão para começar parece ser a desculpa perfeita para condicionar esse ajuste das madeixas em sua cabeça. O que poderá ser viabilizado com o suporte de sua avó (Nelly Ramos), que ajuda a cuidar não apenas dele, mas de seu pequeno irmão, um bebê de poucos meses.


Nas aparências, Pelo Malo pode parecer apenas o filme sobre o menino que deseja alisar os seus cabelos. Mas há alguns componentes a mais nessa história. Por não respeitar os padrões de um regime que exalta - assim como no Brasil de Bolsonaro - o combo militarismo + Igreja + política populista (isso surge nas frestas, seja nos programas de TV, seja nos outdoors ou mesmo na rotina fatigante dos habitantes que parecem encapsulados pelo totalitarismo), Samuel também entrará em pé de guerra com sua conservadora mãe. O menino, afinal, parece ter muitos desejos que são suprimidos a partir de uma retórica que simplesmente torna as crianças invisíveis, jamais estimulando o seu comportamento autônomo ou o respeito as suas eventuais vontades. Como exemplo, Samuel adora a música, o rock, que ele escuta de forma meio escondida na casa da paciente avó (é a mãe de seu pai). Mas quando Marta percebe que o pequeno gosta das artes, da dança, da música, o censura. Aliás, pior: passa a acreditar que seu filho possa ser gay pelo simples fato de cometer essas transgressões. Um tipo de preconceito que, de quebra, muito provavelmente contribuirá para sepultar de vez os sonhos, os anseios e os desejos daquele jovem.

Nesse sentido, a obra também trata de materializar o absurdo da maternidade idealizada, impondo à Marta a figura autoritária que, dentro de casa, funciona como uma espécie de posto avançado do Governo que oprime aquele País. Inseguro, Samuel não saberá como agradar a sua mãe, o que tornará a experiência cinematográfica quase dolorida, desconfortável. Samuel quer apenas cantar suas músicas, dançar, ser feliz, andar com os amigos que quiser, que escolher. Quer alisar o cabelo se assim achar interessante - por mais absurda que possa soar essa busca por uma imagem que não lhe pertence. Mas o menino parece o tempo todo enclausurado em uma rotina de falta de afeto que lhe desgastará enquanto sujeito - e aqui cabe um parênteses para que ressaltemos o fato de que Marta também é refém da precariedade, do machismo, da falta de afeto, da solidão, da dor e da insegurança. É uma obra que expõe as questões mais atuais dessa Venezuela pobre - mas poderia ser qualquer País da América do Sul -, apostando na força do simbolismo, que quase aproxima o projeto do realismo fantástico (e nesse sentido não há sequência mais impactante do que aquela em que o menino e sua melhor amiga brincam de guerrinha com soldadinhos de plástico, quando tiros de VERDADE espocam na vizinhança). É uma obra crua, naturalista, de denúncia, mas sem jamais pesar a mão. Claro que há pouco espaço para a leveza, o desafogo. Mas o mundo para os vulneráveis parece ser esse mesmo: o dos sonhos interrompidos e do desaparecimento da infância. De doer.

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