segunda-feira, 22 de maio de 2023

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - A Copa (Butão)

De: Jamyang Lodro, Orgyen Tobgya, Lama Chonjor e Nethen Chokling. Comédia, Butão / Austrália, 1999, 89 minutos.

"O futebol é a coisa mais importante entre as menos importantes", já diria a frase atribuída ao ex-treinador da seleção italiana Arrigo Sacchi. Mas talvez para um grupo de monges isolados em um monastério tibetano talvez ela seja a mais importante mesmo. De todas. Ou ao menos é assim quando o assunto é a Copa do Mundo. E na realidade pouco importa se o Butão, o Nepal ou mesmo a Índia não estão na disputa. Para os protagonistas de A Copa (Phörpa), essa saborosa comédia butanesa tida como o primeiro filme gravado no país asiático na história, o que vale é conseguir assistir as partidas de futebol. Ver Ronaldo, Zidane, Roberto Baggio e outros ídolos da época. O ano é 1998 e a efervescência do maior torneio parece estar por toda a parte. Sensação amplificada pelo sem fim de pôsteres dos ídolos do futebol, que estão espalhados pelo quarto do jovem noviço Orgyen (Jamyang Lodro).

Na obra dirigida por Khyentse Norbu - que foi assistente de direção de Bernardo Bertolucci na época que o italiano gravou O Pequeno Buda (1993) e que é um respeitado lama - acompanhamos as peripécias de Orgyen, que sempre dá um jeito de fugir da abadia a noite, para tentar conseguir assistir ao máximo de jogos possíveis. Durante as longas sessões de orações na eterna busca por elevação, o pequeno parece mais interessado em saber quem joga, os horários e outros detalhes, o que ele faz em troca de bilhetes com outros interessados. Sendo sempre observados com certo distanciamento por Geko (Orgyen Tobgyal), que espera que os noviços possam se preocupar com assuntos mais espiritualizados do que banalidades como o futebol (e eu que sou colorado deveria seguir pelo mesmo caminho). Como forma de ampliar o senso de compromisso do pupilo, Geko coloca em suas mãos outros dois meninos, que chegam refugiados do Tibete. Mas como não ser contagiado pela febre?


O caso é que num filme como esse a gente não leva em conta apenas a paixão pelo futebol, mas também o amor pelo cinema. O Butão, tido tantas vezes como um dos países mais felizes do mundo, levaria 104 anos produzir o seu primeiro filme. E a gente nota, aqui e ali, uma e outra inevitável imperfeição - de olhadas pra câmera que não eram pra ocorrer até posicionamentos incorretos na hora da tomada. Mas tudo é absolutamente superado pelo carisma do elenco central. Lodro, com suas caretas expressivas, é simplesmente cativante, e no terço final da obra a gente já está numa torcida alucinada para que ele não apenas consiga realizar o sonho de assistir à final da Copa - após um desdobre em Geko (que, ao cabo, também guarda em segredo certo fanatismo pelo esporte) -, como ainda desejamos que tudo dê certo em relação a promessa de reaver um relógio empenhado, que é parte de uma negociação tensa para que uma simples TV com antena parabólica enferrujada possa ser obtida para ver o jogo.

É uma obra tão simples, tão econômica, como costumam ser as obras asiáticas, com seus fiapinhos de história cheios de sentido, que a coisa toda quase pende pra ingenuidade. Mas é meio difícil ficar alheio. Ou não se comover. Há um instante em que Orgyen toma um banho de banheira e, sob suas vestes, está uma camiseta canarinho com o número nove e o nome de Ronaldo. Em épocas tão equivocadas no que diz respeito ao senso de patriotismo, não deixa de nos dar uma pontinha de orgulho saber que naqueles anos 90 agora tão distantes, o futebol brasileiro gerava tamanha euforia. A propósito do contexto político, social e cultural da região, Norbu não deixa de fazer um aceno, especialmente na abordagem indireta que envolve a ocupação chinesa dos países do entorno. De alguma forma o destemido esforço de Orgyen na tentativa de quebrar o status quo ou a ordem dominante, talvez funcione ainda como uma alegoria que coloca frente a frente tradição e modernidade, obsolescência e contemporaneidade. Ou mesmo a ponta fraca enfrentando destemidamente a mais forte. Tá no Mubi. E vale conferir.


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