quinta-feira, 14 de abril de 2022

A Volta ao Mundo em Oitenta Filmes - White Building (Camboja)

De: Kavich Neang. Com Piseth Chhun, Hout Sithorn, Ok Sokha e Chinnaro Soem. Drama, Camboja / China / França / Qatar, 2020, 91 minutos.

Existe algo na atmosfera de filmes como White Building (Bodeng Sar) - o enviado do Camboja pra última edição do Oscar e que está disponível na plataforma Mubi - que faz com que fiquemos meio que desconfortáveis o tempo todo. Não há muito espaço pra respiro em um contexto de miséria, de doenças, de abusos de poder e de contrastes sociais, como os que vemos na estreia do jovem diretor Kavich Neang. A obra abre, por exemplo, com uma bela tomada aérea da capital Phnom Penh. Nela vemos um conglomerado de edifícios dispostos de forma meio caótica - uma confusão de cores, de objetos, de retalhos aleatórios, de fios de luz emaranhados, de cinza de reboco desorganizado, de restos de entulho que se acumulam. Aquela é a realidade dos moradores do "prédio branco" - vá lá, talvez ele já tenha sido branco em algum momento da vida - e que acompanharemos na próxima uma hora e meia.

Entre os moradores está o jovem Samnang (Piseth Chhun) que, ao lado de outros dois amigos sonha em ser dançarino de hip hop - a arte poderá ser um caminho para ganhar a vida, já que seu pai (Hout Sithorn) é um escultor aposentado, que trabalhava para o Estado. Só que essa é uma história de perdas. E de perdas permanentes. Quando um dos amigos de Samnang tem a oportunidade de se mudar para a França - há um familiar que reside lá -, a ideia de dançar é abandonada. A pobreza faz com que as necessidades mais básicas também deixem de ser atendidas: interessado no terreno em que está o prédio, o Estado oferece um valor patético de subsídios aos moradores para a compra. O que gerará longas discussões entre os habitantes do local, que dificilmente chegarão a um consenso. Em meio a tudo, o prédio parece apodrecer a olhos vistos. Falta infraestrutura, limpeza, água.

Pródigo em utilizar rimas visuais, o diretor esbanja uma eficiência quase exagerada na persistência em mostrar paredes embolorados, tetos com infiltrações, lixo acumulado. É a metáfora perfeita para uma sociedade desorganizada e cheia de disparidades, que mantém uma elite encastelada, enquanto o povão permanece na miséria. Aliás, qualquer semelhança com outros países de Terceiro Mundo não é mera coincidência. Enquanto os empresários de construtoras ligados ao Estado visitam o condomínio em seus carrões, Samnang vê se pai sucumbir aos poucos, vitimado por um quadro avançado de diabetes - e, admito que poucas vezes vi um filme tão realista na hora de abordar as dificuldades relacionadas à doença. Ter sido empregado do Estado não ajuda o idoso em nada. Indo pra lá e pra cá, precisará de uma cirurgia para a qual a família não possui a capacidade de arcar.

Nesse sentido, trata-se de uma experiência que é sutil na hora de apresentar os problemas políticos, sociais, culturais - não se esfrega na cara o absurdo de um País regido por uma monarquia, que ainda sofre os efeitos de uma série de conflitos internos. Ou mesmo o processo de gentrificação vivido pela população cambojana - especialmente aquela que está nos grandes centros. E a meu ver aí está uma das mágicas de experimentar filmes de outros países, não tão óbvios. É um processo de descoberta em que vamos tateando, inferindo. Exibida no Festival de Veneza, a obra fez sucesso em outras premiações mundo afora. E deu visibilidade para uma série de dramas domésticos que ecoam dores muito maiores. Daquelas que desestimulam o lado mais fraco a seguir lutando. Por qualquer pedaço que seja. De casa, de carne, de vida. Sem soluções. Sem heróis imediatos. Sem um Deus ex-machina que salve o dia.

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