De: Mounia Meddour. Com Lyna Khoudri, Shirine Boutella e Amira Hilda Douaouda. Drama, Argélia / Qatar / França / Bélgica, 2019, 106 minutos.
"Irmã, cuide da sua imagem ou nós cuidaremos". "É pecado as mulheres se reunirem às sextas-feiras". "As mulheres devem ficar em casa, perto de Alá, sem se expor". "Não beba em pé ou com a mão esquerda, satanás pode ver". Todas essas frases proferidas no decorrer do filme Papicha podem até parecer saídas dos escombros da Idade Média. Mas na realidade é só Argélia, em meados dos anos 90. Foi nesse período que uma guerra civil entre representantes do governo e rebeldes islâmicos que integravam um grupo fundamentalista religioso, teria resultado na morte de cerca de 150 mil pessoas. Entre elas milhares de civis, de parte a parte. E como se já não bastasse o patriarcalismo estrutural em regiões que parecem pender para a opressão e para todos os tipos de violência possíveis, o radicalismo ampliaria o sensação de isolamento das mulheres. Acuadas, talvez tivessem apenas umas as outras, afinal. O que em alguma medida, é visto na obra dura e comovente da diretora Mounia Meddour.
E confesso que, sendo leigo no assunto, admito não ter a certeza de quando foi que a coisa começou a desandar no País africano. Mas o filme já começa com um senso de urgência - reforçado pela excelente e tensa edição - trepidante. Enquanto se empenham em dar uma escapadela da faculdade em que estudam, as jovens Nedjma (Lyna Khoudri) e Wassila (Shirine Boutella) colocam um plano bastante ousado de ir a uma casa noturna da capital Argel. O que envolve uma estratégia quase de guerra - com táxi clandestino, pagamento de propina para o vigilante do campus e uma sequência de mentiras, quando são paradas em uma barreira por um grupo militar islâmico. "Estamos voltando de um casamento", explicam, enquanto improvisam a colocação do Hijab (aquele pano típico árabe, que cobre o rosto das mulheres). O caso é que para os fundamentalistas, mulher não tem que estar na rua naquela hora da noite. Muito menos, sequer sonham eles, indo para uma boate. Dançar, se divertir, beber, fumar, curtir a vida.
Nedjma, a carismática protagonista, é apenas uma jovem de vinte e poucos anos que adoraria poder viver sem medo de morrer a cada instante, a cada esquina. De poder colocar a sua calça jeans e o seu all star - ou o seu vestidinho preto com sandália de salto, na cena noturna -, sem ser acossada por ninguém. Poder ver filmes, estudar, sair quando quiser, ouvir música. E ser estilista. É o sonho dela. E parte do processo de ir a uma boate também tem a ver com o seu trabalho e o seu sonho de ser uma profissional da alta costura. Meio ás escondidas ela adquire os tecidos e os adereços em uma espécie de mercado perto da faculdade onde, após cerzidas, as peças vestirão outras meninas (amigas que ela conhece da faculdade). Mas o problema para os fanáticos religiosos é que essa "liberdade" toda incomoda. Mulher de calça jeans? "Não sei lidar com toda essa nudez", argumenta um jovem amigo - que parece ter uma cabeça de votante misógino do PL jovem. Não há nudez ali. E se houvesse? O que teria o rapaz a ver com isso?
Esse é um dos tantos momentos em que Nedjma se exaspera ao perceber que o fundamentalismo dos grupos rebeldes parece se espalhar, inclusive entre pessoas da idade dela. Em uma outra sequência carregada de apreensão, Nedjma discute com um rapaz que está colando cartazes que propõem as supostas novas vestes das mulheres, em caso de vitória dos grupos de dissidência. Todas pretas ou marrons, cobertas, sem vida, sem personalidade, sem corte - como costumam ser as roupas absurdamente comportadas da doutrina islâmica. Diante de tudo isso, o simples sonho da protagonista, em meio a homens abusadores de toda a sorte, pressões diversas - inclusive de mulheres que apoiam esse regime totalitário e misógino - e uma sensação de impotência diante de tudo, é organizar um desfile na faculdade. Um desfile de moda, com suas colegas e amigas utilizando versões reimaginadas e ressignificadas do Hijab. Mas como fazer isso se o simples ato de não usar tais vestes pode significar, inclusive, a morte?
Revoltante, o filme não alivia ao evidenciar a violência que explode por todos os lados - inclusive de modo surpreendente, como revela a dolorida sequência que envolve a irmã de Nedjma, Linda (Meriem Medjkane). E quando os grupos islâmicos ameaçam fechar as faculdades - "você quer dominar as mentes delas", alega uma fundamentalista que invade uma aula sobre sociedade moderna (aliás, qualquer semelhança com projetos como Escola Sem Partido não é mera coincidência) -, a protagonista prossegue com seu sonho, sendo apoiada por suas amigas e colegas. O que resulta em um sem fim de instantes comoventes, que fortalecem o ideal de sororidade como um caminho absolutamente natural na hora de lutar contra sistemas patriarcalistas. Disponível na Mubi, e vencedor de vários prêmios internacionais, esse é daqueles projetos que nos deixam um gosto amargo. Ainda que, em tempos de ascensão da extrema direita e de grupos reacionários como um todo, seja totalmente necessário.
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