quinta-feira, 4 de março de 2021

Pérolas da Netflix - M-8: Quando a Morte Socorre a Vida

De: Jeferson Dê. Com Juan Paiva, Mariana Nunes, Raphael Logam, Ailton Graça, Zezé Motta e Lázaro Ramos. Drama / Suspense, Brasil, 2020, 84 minutos.

Vamos combinar que um filme como M-8: Quando a Morte Socorre a Vida é muito melhor em sua intenção, do que em sua execução. O orçamento pode ser baixo, as limitações visíveis, mas o carinho com que todos tratam o projeto disponível na Netflix é palpável - o que também pode ser também  explicado pelas várias participações especiais, de atores do calibre de Lázaro Ramos, Zezé Motta e Aílton Graça, só pra citar alguns. O fio narrativo da obra pode ser resumido pela curiosidade que move o jovem estudante de Medicina Mauricio (Juan Paiva). Em meio a uma das aulas de Anatomia do primeiro semestre pergunta aos colegas brancos, de classe média se eles haviam reparado que todos os corpos disponíveis para dissecação no laboratório eram de pretos. E, pior do que isso: corpos que chegaram até a universidade sem uma "identidade", entregues como indigentes.

Maurício, já calejado pelo racismo estrutural que o rodeia, percebe que os únicos negros no ambiente acadêmico são seguranças, faxineiros, a senhora que atende no cozinha ou na secretaria. Único negro estudante, empreenderá uma verdadeira via crúcis para tentar identificar a origem do cadáver conhecido apenas como M-8 (e que passará a atormentá-lo em pesadelos em que se verá envolvido no dilema ético de "perfurar" cadáveres de pessoas da mesma raça que ele). Ao mesmo tempo em que tenta descobrir alguma pista no necrotério municipal, ou mesmo nos arquivos da faculdade, se deparará com um grupo de mães que protestam nas ruas, contra violência relacionada a crimes de ódio racial. Fechando o combo, a relação ao mesmo tempo afetuosa e conturbada com sua mãe Cida (a sempre ótima Mariana Nunes), que insiste em levá-lo ao terreiro de macumba, formará a história que une ancestralidade, religião, morte, misticismo, identidade de corpo, memória e luta contra o preconceito.

É um filme bom e curtinho que deixa sua marca sem esconder a bandeira ou o lado que está defendendo. A trilha sonora com canções de rappers como Rincon Sapiência e Xis e os grafites nos muros da comunidade em que Mauricio mora (em que a imagem de Marielle Franco, vereadora assassinada há quase três anos em circunstâncias ainda não esclarecidas, surge em toda a sua glória mais de uma vez), dão conta do contraste social, quando comparados com os ambientes hermeticamente asseados e monocromáticos das habitações dos colegas de classe média alta moradores da Zona Sul do Rio. Aliás, contraste é a palavra-chave aqui. Enquanto um preto andando na rua será motivo de uma truculenta e inexplicável ação da polícia, um branco será melhor atendido em uma repartição pública. Enquanto o branco terá medo de andar de ônibus por parecer sempre desconfiado do entorno, um preto só será digno de confiança no condomínio burguês quando estiver vestindo a farda de segurança.

Sim, é um filme que conecta uma série de temas místicos, com a ciência desenvolvida em uma faculdade, mas que une todos esses elementos incluindo, aqui e ali, a denúncia dos absurdos de um País que assassina um jovem negro a cada 23 minutos - e a cena em que Maurício apanha da polícia por simplesmente estar na rua, a noite, em um bairro nobre, é não apenas revoltante, mas também extremamente real, como não nos deixa esquecer o sem fim de "casos isolados" diários mostrados na imprensa (fora os tantos outros que não tomamos conhecimento). Trafegando no limite entre o suspense e o drama, a película do diretor Jeferson Dê ainda presta uma justa homenagem as religiões afro que, em muitos casos, é negligenciada quando o assunto é a arte para as grandes massas. Sim, as interpretações podem até pecar pela falta de naturalismo. Os diálogos podem soar até artificiais. Mas o entusiasmo que grita a cada frame, é o que ilumina a trajetória da obra. O que faz com que, como espectadores, nos tornemos solidários a causa.

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