segunda-feira, 1 de junho de 2020

Picanha.doc - A 13ª Emenda (13th)

De: Ava DuVernay. Documentário / Policial, EUA, 2016, 105 minutos.

Ah, os Estados Unidos. A "Terra da Liberdade". De preferência se você for branco, rico e bem nascido. Por que se você for negro e pobre, terá uma grande chance de, em algum momento de sua vida, ser preso. Ou morto. Pela polícia, pelo Estado. Muitas vezes injustamente ou por algum motivo fútil. Outras tantas pela cor de sua pele. Sim, pela cor da sua pele. Nós, brancos, não temos como saber o que é levantar todos os dias pensando que você pode morrer porque o agente da lei confundiu o teu guarda chuva com uma arma. Ou que você vai ser perseguido pela polícia simplesmente porque está em alguma "atitude suspeita". Atitude suspeita? Talvez usando um moletom com capuz. Uma mochila. Em tempos de Trump e de Bolsonaro o ódio, o preconceito e a intolerância saíram definitivamente do armário. Foram legitimados, bizarramente, pelo voto. Saíram para as ruas, livres, tomando leite, carregando cruzes e capuzes, num cenário pós-apocalíptico que nem o escritor da mais absurda das distopias poderia imaginar.

E é justamente por isso, por praticamente todos os dias haver um "caso George Floyd", que a obra de Ava DuVernay segue sendo tão necessária. Tão relevante. Diretora de Selma (2014) e da série Olhos Que Condenam (2019), a realizadora consegue um feito histórico com o documentário indicado ao Oscar 13ª Emenda (13th): praticamente COMPROVAR que a escravidão não deixou de existir. Ela apenas mudou a forma como acontece - numa equação que mistura brechas absurdas na legislação, financiamento de grandes empresas em segurança pública (naturalmente ligadas ao partido Republicano) e uma ampla campanha de demonização da comunidade negra, retratada na mídia de forma incansavelmente maniqueísta na chamada Guerra às Drogas. O resultado disso tudo? Hoje a população carcerária dos Estados Unidos corresponde a 25% do número de presos no mundo. Sim, é isso que você leu. E desse número, 40% dos presos são negros - mesmo a população afrodescendente masculina sendo de pouco mais de 6% do total de americanos no País.


Mas para entender um pouco melhor esses números, é preciso voltar no tempo. Quando foi promulgada lá em 1865, pelo então presidente Abraham Lincoln, a 13ª Emenda tornava inconstitucional a escravidão. Uma conquista, evidentemente, que tornou "livres" cerca de quatro milhões de americanos. Só que isso gerou insatisfação entre os proprietários de terras e uma espécie de caos social imediato, com a necessidade de realocação de toda essa população - em postos de trabalho, em moradias, em outros espaços. Uma das soluções encontradas? Tornar a escravidão "legal" dentro do sistema prisional - uma brecha da 13ª Emenda. Assim,os presos - de preferência os negros - poderiam trabalhar de forma intermitente, sem remuneração, atendendo uma demanda do Estado e sem ferir nenhuma legislação. Um tipo de escravidão legitimada. Este contexto fez com que se intensificassem as lutas pelos direitos civis dos negros. Especialmente pelo fato de a segregação e o racismo jamais terem deixado de existir naqueles anos pós Guerra da Secessão. Era um período turbulento. E que segue sendo turbulento, com a violência institucionalizada, atingindo números alarmentes.

Com habilidade, Ava volta no tempo para mostrar como o filme O Nascimento de Uma Nação (1915) era racista, servindo de documento de seu tempo. E de como a campanha de vilanização dos negros a partir do aumento da criminalidade no pós-guerras prosseguiu, fazendo surgir em meados do século passado lideranças como Martin Luther King e Malcolm X e movimentos como o dos Panteras Negras - todos aniquilados com o apoio de políticos e da aristocracia norte-americana branca, sob a desculpa de representarem um risco para a sociedade. Por lutarem por direitos civis, direitos iguais, tais figuras foram perseguidas, mortas, o que consolida a ideia de que a segregação jamais deixou de existir. No decorrer do filme, pesquisadores, professores, escritores, ativistas e executivos de empresas, analisam essa sucessão de fatos encadeados na Terra do Tio Sam, com uma grande riqueza de materiais de arquivo, que dão conta de uma política que estabeleceu o medo na população americana, especialmente a partir da consolidação do estereótipo do negro com o uma figura violenta, deturpada, que vive a margem da sociedade. E que está pronta para matar, assassinar e cometer outros crimes, que só poderiam ser parados com conservadores tão "durões" quanto eles. É dessa forma que o fascismo permanece, afinal: sob o manto da desculpa da defesa da família, da propriedade, da moral e dos "bons costumes".


O resultado disso? Políticos como os já citados Nixon e Reagan, além de Bush e até do democrata Bill Clinton foram quem ditaram as regras nas campanhas contra a violência, num combo que amplificou a caçada a "criminosos" que eram presos simplesmente por estarem carregando alguns gramas de maconha. Ou por estarem andando despreocupadamente na rua. E sem muita chance de conseguir a liberdade - a menos que fosse num acordo injusto. Lembra do começo lá do texto? Dos 25% de população carcerária do mundo estarem nos Estados Unidos? Tem um dado ainda pior: o que dá conta de que o número de presos saltou de 300 mil no começo dos anos 70 para 2,3 milhões de pessoas atrás das grandes nos dias de hoje, somente nos Estados Unidos. Prender, matar, humilhar. É isso que o Estado norte-americano faz com a população negra. É isso que o documentário de Ava Duvernay mostra. Quase ao final, um dos pesquisadores afirma que alguém teria perguntado "como as pessoas do passado aceitavam tão passivamente a escravidão, naquela época? Como toleravam?" A resposta: "seguimos vivendo nessa época. E seguimos tolerando." Que campanhas como o #blacklivesmatter, somadas a protestos pacíficos (ou não) possam mudar esse cenário. Afinal de contas, fascistas não passarão. E nós estamos também nessa luta.

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