De: Maya Da-Rin. Com Regis Myrupu, Rosa Peixoto e Lourinelson Vladimir. Suspense / Drama, Brasil, 2019, 96 minutos.
Vencedor do Festival de Brasília no ano passado, A Febre, filme de estreia da diretora Maya Da-Rin discute o sincretismo cultural em nosso País, a partir da história do índio Justino (Regis Myrupu). Integrante da tribo indígena Desana, ele saiu de sua aldeia nos arredores de Manaus há mais de vinte anos para trabalhar como vigilante na estação portuária da capital do Amazonas. É lá que ele tem uma rotina monótona, enfadonha, em meio a enormes guindastes e pesados contêineres que entram e saem diariamente. Viúvo e morador da periferia - precisa pegar ônibus diariamente e caminhar mais um outro tanto -, terá o tédio quebrado pelo anúncio feito pela sua amorosa filha Vanessa (Rosa Peixoto), que está indo para Brasília estudar medicina. Enquanto assimila a novidade, Justino passa a ser tomado por uma febre forte, de origem meio inexplicável. Em seu trabalho, tem dificuldade em se manter acordado. No dia a dia, sofre com o calor escaldante e com as chuvas tropicais e torrenciais. No noticiário, o assunto é um animal selvagem, sem origem determinada, que estaria rondando o bairro. Em resumo: acontece bastante coisa enquanto se espalha a letargia dos dias.
Quem já assistiu qualquer filme do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul (Mal dos Trópicos), se identificará imediatamente com o cinema que mescla misticismo, folclore, bucolismo e crítica social. Distante de seu lugar de origem, Justino acredita estar adaptado à vida urbana, esquemática, cheia de horários, compromissos e compras no mercado. Zanzando em meio as estruturas faraônicas do porto, oferece o óbvio contraste do sujeito que está deslocado - e que, doente, tem dificuldade de expressar efetivamente o que sente. "Você está cada vez mais como os brancos. Talvez o pajé da nossa aldeia pudesse lhe curar!", clama o seu irmão, em uma visita. Distante dos ritos, dos hábitos, dos costumes de sua aldeia, o protagonista é o lógico "animal ferido", numa metáfora quase recorrente durante os pouco mais de 90 minutos de projeção. "Você é um índio já 'domesticado', diferente dos que eu encontrava lá na fazenda em que era capataz", provoca um colega de trabalho. A doença do ódio avança, abate, desola. E Justino não sabe bem explicar qual o caminho para a cura.
Nesse sentido, A Febre é um bem vindo exercício de reflexão sobre os tempos que vivemos, em formato de filme. Em um momento em que são praticamente diárias as notícias sobre massacre a tribos indígenas e descaso generalizado com estas famílias - especialmente em tempos de pandemia -, não é difícil encontrar paralelo entre a persistência de Justino em tentar se adequar ao meio em que vive e o sofrimento diário a que ele é submetido. Em uma cena tão triste quanto constrangedora, sua chefe o cobra sobre o fato de ter sido flagrado dormindo no trabalho. Lhe dará uma advertência que, mais adiante, poderá resultar em uma justa causa se ele não se "corrigir". Sobre a doença misteriosa que lhe acomete, as febres que vem e vão meio sem explicação, as visões sobre o animal selvagem que ladeiam o mato, há pouco interesse. É nessa hora que pesa a diferença cultural. O contraste entre os povos. E o desrespeito generalizado a hábitos, costumes, tradições. Justino talvez esteja doente por se sentir distante daquilo que lhe é caro: seu povo, família. O cheiro do mato, o contato com a terra. Sem perspectivas, se vê obrigado a trabalhar em serviço de "branco". E se sente abandonado.
Tecnicamente bem executada a obra, que também está disponível no Now, se ocupa de silêncios e de sons diegéticos para estabelecer o contraponto natural entre a floresta que aparece nos flancos de Manaus - densa, quente, úmida - e a urbanização geométrica, dura, desinteressante. Trafegando nesses dois universos, Justino é a representação genuína do "peixe fora da água" sem jamais soar caricatural. Ao contrário, sua interpretação naturalista, sóbria, se valendo de olhares e de sutilezas (nos gestos, na voz), comove e funciona muito bem, estando bem adequada ao que a obra propõe. Já a filha Vanessa é o respiro de um mundo que se abre, enquanto outro se fecha e a forte conexão com o pai garante alguns dos mais bonitos momentos. No fim das contas, A Febre é obra política, ideológica, mas sem necessariamente esfregar a sua "bandeira" na cara do espectador. É óbvio, ao final, que é preciso refletir sobre a questão indígena no Brasil. Trabalhar por políticas públicas que garantam, minimamente, a manutenção de suas existências. E que possam amenizar a "doença" diária a que estes povos estão submetidos.
Nota: 8,5
Nenhum comentário:
Postar um comentário