segunda-feira, 15 de junho de 2020

Pérolas da Netflix - Destacamento Blood (Da 5 Bloods)

De: Spike Lee. Com Chadwick Boseman, Delroy Lindo, Clarke Peters, Jonathan Majors e Norm Lewis. Drama / Guerra, EUA, 2020, 154 minutos.

Em meio a protestos nos Estados Unidos por causa da morte de George Floyd e da ampliação do debate sobre o Movimento #BlackLivesMatter não poderia haver timing melhor para o lançamento de Destacamento Blood (Da 5 Bloods) - novo filme do diretor Spike Lee. Assim como no clássico Faça a Coisa Certa (1989) e no recente Infiltrado na Klan (2018), as discussões sobre o racismo pontuam este novo trabalho. Melhor ainda, jogam luz sobre um fato pouco conhecido do grande público: o de que em guerras como a do Vietnã, boa parte dos soldados enviados para o front eram negros que formavam as primeiras fileiras de combatentes - praticamente atirados à morte. Essas histórias reais normalmente a gente não vê no cinema, especialmente em grandes clássicos como Apocalypse Now (1979) ou Platoon (1986). Assim o que Lee faz, em um primeiro momento, é prestar uma homenagem à memória destes soldados que também estiveram em guerras absurdas. Que perderam vidas, tiveram suas famílias devastadas, voltaram traumatizados.

Em uma guerra como a do Vietnã há uma segunda guerra em andamento: a racial. E não é por acaso que o filme intercala cenas do conflito com outras dos discursos pacíficos de Martin Luther King nos anos 60, ou de outros líderes e figuras representativas da luta pelos direitos civis. Trinta e dois por cento dos soldados que estavam em Saigon ou outras cidades vietnamitas eram negros, afinal. Um terço. Mesmo a população afro norte-americana não ultrapassando os 11%. E esse fato por si só já renderia um verdadeiro tratado sobre as questões raciais em meio às guerras. Mas Lee consegue ir ainda mais além: transforma seu filme em um recorte da nossa sociedade atual, com o microcosmo apresentado funcionando como uma metáfora real para a completa incapacidade de diálogo entre países com ideologias distintas. Assim, não é difícil perceber nas entrelinhas que os traumas do passado se refletirão em comportamentos xenófobos, intolerantes e de completo desrespeito às diferenças.


Afinal de contas, muitos anos se passaram desde o fim da guerra. Mas quatro veteranos - Otis (Clarke Peters), Eddie (Norm Lewis), Melvin (Isiah Whitlock, Jr.), além do intempestivo Paul (Delroy Lindo, em caracterização que só não estará no Oscar se Academia estiver hibernando) - retornam ao País asiático nos dias de hoje para resgatar os restos mortais do líder do esquadrão Stormin' Norman (Chadwick Boseman). Além disso, a intenção é a de encontrar um tesouro - no caso, dezenas de barras de ouro avaliadas em milhões de dólares - que teria ficado para trás na época do conflito, o que só será possível com o apoio de figuras locais como o guia turístico Vinh (Johnny Tri Nguyen) e a ex-prostituta Quân (Lam Nguyen). A presença de ativistas franceses no local - empenhados em desarmar bombas -, somados ao trauma generalizado que os conflitos estabeleceram na memória de todas as nações envolvidas na guerra, será o estopim para que questões mal resolvidas venham à tona, sendo a ambição financeira uma parte da origem de todos os males (no fim das contas todos os envolvidos querem tirar uma casquinha do tesouro).

Mas há também as diferenças políticas e Lee é hábil ao apresentar seus personagens como figuras complexas, cheias de camadas. Paul, por exemplo, parece ser o mais traumatizado pela guerra - os motivos surgem no decorrer da narrativa -, não hesitando em vestir um boné da campanha de Donald Trump, com a frase "make America great again", num daqueles paradoxos políticos que, claro, não são exclusividade nossa. Conservador e preconceituoso, trata os estrangeiros com desconfiança e beligerância, acreditando ainda em teorias conspiratórias, em paranoia comunista e em... Deus, claro. É ele o responsável por praticamente "reativar" a guerra, arrumando briga inclusive com seu filho, o professor pacifista David (Jonathan Majors). E, confesso que, por mais difícil que seja essa personagem, ela tem um sentido de existir no combo que envolve crítica ao absurdo da guerra, misturada com a crença cega em políticos que se apresentam como líderes quase messiânicos dispostos a livrar a nação de todo o mal (como é o caso de Trump).


Alternando momentos mais contemplativos de fluidez narrativa - a obra não tem pressa nenhuma em apresentar seus personagens, se demorando também em mostrar um Vietnã mais "ocidentalizado" -, com outros de pura tensão quase involuntária, a obra também presta homenagem à filmes de guerra do passado, seja em seus ângulos de câmera evocativos ou em sua trilha sonora, com direito até mesmo a aparição da Cavalgada das Valquírias, de Wagner. Além disso, sugere que conflitos do tipo dificilmente possuem um lado certo do combate, o que fica ainda mais evidenciado em uma cena decisiva na reta final da película, em que dois personagens se "reencontram". Trata-se, afinal de contas, de uma obra pouco óbvia, que utiliza um tom não tão ostensivo (e até eventualmente onírico), para destacar seu ponto de vista. A guerra é estúpida, afinal. E além de tudo é racista. E traumas desse tipo não podem ser superados na marra, com blocos de ouro - como se o dinheiro apagasse todas as dores.

Um comentário:

  1. Que baita filme! A cena do Paul no meio da floresta, reencontrando e enfrentando seus demônios é imensa!

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