quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Novidades no Now/VOD - Devorar (Swallow)

De: Carlo Mirabella-Davis. Com Haley Benett, Austin Stowell, Elizabeth Marvel e Denis O'Hare. Suspense / Drama, EUA, França, 2019, 94 minutos.

Vamos combinar que a premissa curiosa de Devorar (Swallow), por si só, é um atrativo a parte: no filme que estreou recentemente na plataforma Mubi somos apresentados a protagonista Hunter (Haley Benett), uma jovem dona de casa que tem o estranho hábito de ingerir itens não alimentícios. Conhecida como Alotriofagia - ou Síndrome da Pica (sim, o nome é esse mesmo) -, a rara afecção gera uma vontade anormal de ingerir moedas, bolinhas de gude, pilhas, clipes, terra ou quaisquer outros objetos variados. No caso de Hunter, o "gatilho" vem com a descoberta de uma gravidez: ela é casada com Ritchie (Austin Stowell), um rico herdeiro de uma empresa de tecnologia e passa os dias em casa, ocupada com afazeres domésticos ou com jogos de celular. Funcionando como uma espécie de "esposa troféu", espera o marido em casa, bem vestida e com a janta no capricho. Em sua vida há pouco espaço para seus desejos. Aliás, eu tô sendo generoso chamando de "vida" uma existência apagada, repetitiva e completamente submissa.

Não fosse o capricho da produção, o apuro técnico e o bom desenvolvimento da premissa e talvez Devorar pudesse ser apenas uma excêntrica experiência cinematográfica - algo que talvez Todd Solondz dirigisse. Mas não: o que temos é um drama com boas doses de suspense, que aproveita a sua temática para discutir assuntos como traumas de infância, papel da mulher na sociedade (e nos relacionamentos) e até preconceitos diante de condições psicológicas de difícil identificação. Desde o instante em que o filme começa o estranhamento está em tudo - na composição dos quadros, no contraste entre as cores utilizadas (nos cenários e nos figurinos), nos closes fechados, na geometria dos ambientes da ampla casa envidraçada e até na sua trilha sonora. O silêncio quase permanente de Hunter em seu isolamento diário - numa espécie de prisão particular -, parece o tempo todo nos comunicar algo a respeito de "demônios interiores" prontos para vir à tona.

O espectador mais desavisado, talvez se sinta incomodado com a naturalidade com que sua temática é descortinada na tela. Mas cinema é, TAMBÉM, pra isso: incomodar. Hunter está claramente insatisfeita com seu casamento mas parece lutar contra isso, já que tem uma casa absolutamente perfeita, um marido bonito e uma existência que, talvez, muitas pessoas desejassem, cheia de conforto, de luxo, de festas e de roupas e sapatos exuberantes. Mas, a que custo? Em certa altura, Ritchie lhe promete um colar na volta para casa do trabalho, mas não hesitará em explodir quando souber do problemas enfrentado pela protagonista. Ou o que o ocasiona. Devorar também nos mostra que, nós, humanos, possuímos uma série de camadas, de muitas complexidades, que misturam consciente e inconsciente, traumas, anseios, frustrações e oscilações de humor. E que dificilmente será fácil lidar com tudo isso. Ou ao menos compreender a lógica exata das coisas.

A presença de uma psicóloga ajudará a descortinar, aos poucos, algumas questões relacionadas ao passado (e a infância) que nos farão compreender as dores de Hunter. Há problemas familiares mal resolvidos que podem estar na origem de sua condição, o que poderá ser solucionado com terapia, conversa e confronto com os esqueletos no armário. Inteligente, o filme utiliza o seu título original como uma metáfora: talvez seja preciso, afinal, "engolir" muita coisa nessa vida, pra tentar se encaixar numa sociedade machista e patriarcal. Mas, em algum momento, aquilo que está lá dentro precisará sair. Nem que seja na marra. Por que incomoda, força, machuca. Talvez a opressão alcance até uma gravidez não tão desejada e que tinha o objetivo de apenas cumprir o seu papel em uma sociedade em que a transparência - tal qual a casa requintada cheia de vidros e espelhos da família -, pareça sempre pronta a ser rompida. No mínimo instigante.

Nota: 8,0

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