De: Adirley Queirós. Com Marquim da Tropa, Shokito, Dilmar Durães e DJ Jamaika. Documentário / Ficção científica, Brasil, 2014, 93 minutos.
Curiosa mistura de documentário com ficção científica, o nacional Branco Sai, Preto Fica é mais um daqueles que se utiliza da distopia futurista, para falar dos tempos que vivemos. Funciona bem como uma grande metáfora que une cinema marginal com obra cyberpunk para dizer que o racismo estrutural amassa o preto periférico, tornando palpáveis as suas tragédias cotidianas. Aqui, acompanhamos a história de dois sujeitos que sofreram com a violência policial durante uma batida em um baile funk - o que viria a deixar suas vidas marcadas para sempre. O primeiro é Marquim (Marquim do Tropa), que perde o movimento das pernas após ser alvo da agressão dos agentes, se tornando cadeirante. O segundo é Sartana (Shokito) que, pisoteado pela cavalaria da polícia montada, tem a perna amputada. O componente ficcional envolverá um certo Cravalanças (Dilmar Durães) que vem do futuro para tentar investigar o que teria acontecido na noite do fatídico baile, com a intenção de colher provas que possam incriminar o Estado.
Sem muita pressa, a obra de Adirley Queirós funcionará como uma espécie de painel que denuncia o racismo institucional - aquele que advém de órgãos públicos, empresas privadas, corporações ou universidades. Assim, por mais curiosa que possa ser a sequência em que Marquim viaja em meio as cidades-satélites de Brasília, sendo alertado pelo "sistema" da necessidade de estar com seu passaporte em dia para acessar a capital do País, não parece haver nenhuma surpresa quanto a isso. Nesse caso, ficção e realidade se mesclam, nos fazendo lembrar que o acesso a certos espaços públicos, especialmente nas metrópoles higienizadas, é privilégio daqueles poucos que integram aquela parcela mais aristocrática da nação. Dessa forma, obter o documento que permita o acesso a estes locais, passará a ser uma espécie de obsessão não apenas de Marquim, como de amigos dele - caso do rapper Jamaika (Dj Jamaika).
Em paralelo, Cravalanças virá do ano de 2070 em uma espécie de container bastante precário. Enquanto recebe ordens dos agentes do futuro, tentará de todas as formas estabelecer contato com aqueles que sofreram nas mãos de uma polícia punitiva, que traumatiza o preto pobre pelo simples fato de ser... isso mesmo, preto e pobre. Ao mesmo tempo, Marquim tentará superar a melancolia dos dias isolado em sua precária e apertada casa fazendo transmissões de rádio para ninguém (e a trilha sonora é um achado). Já Sartana se esforçará para tentar encontrar a prótese ideal para a sua perna. Em ambos os casos o desenho de produção involuntário serve para reforçar o caráter miserável da vida dos dois protagonistas: vivendo em meio a entulhos, em residências decadentes, sujas, sufocantes, tocam uma vida em que haverá pouco espaço para qualquer tipo de satisfação. Ou mesmo de compensação por aquilo que ocorreu no passado.
Utilizando também os cenários desérticos e os objetos cênicos decrépitos como parte da construção do cenário desolador, Queirós parece comunicar muito mais com o uso da imagem do que, necessariamente, do texto. Há um clima generalizado de desalento, que se sobressai nos silêncios, na ambientação que oprime, no eco das vozes contidas. Marquim quer fazer contato com o "futuro" e resolve reunir um sem fim de manifestações culturais variadas - do barulho das feiras livres, passando pelo divertido aparato musical de um conjunto de tecnobrega, até chegar ao hip hop como expressão. Enviar esse material para sabe-se lá onde e com que tecnologia parece ser a solução final em meio a trens que nunca chegam, horizontes pós-apocalípticos, tiroteios contra seres imaginários (mas muito "reais" para os envolvidos). É tudo muito simbólico, nem sempre fácil. Mas é difícil não ficar impactado por essa obra que, não por acaso, se tornou o 69º melhor documentário da história, de acordo com votação feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Uma bela credencial.
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