terça-feira, 3 de novembro de 2020

Lasquinha do Bernardo - Os Braços Sedutores da Solidão

“A solidão é fera, a solidão devora”, escreveu certa vez Alceu Valença em uma bela canção.


Não é preciso ir longe para perceber que esta condição é tema de inúmeras canções, poemas, quadros, filmes e textos. Alguns fogem do assunto, compreensível, afinal a realidade pode ser tão ou mais dolorosa que a ficção. Há aqueles que já estão, muitas vezes, sozinhos e isolados, não é preciso que a arte os lembre disso. Para outros é simples e até mesmo factível imaginar um cenário no qual se está completamente só: andar pelas ruas desertas, sem a necessidade de desvios ou encontros desagradáveis, apreciar o silêncio, deixando para trás o barulho intenso dos carros e das pessoas, manter contato apenas com seu pensamento.

E é neste palco de total distância e isolamento, que Bruno (Fábio Porchat), protagonista de “Entre Abelhas”, drama brasileiro de 2015, produzido e estrelado por boa parte do agora ex-elenco do Porta dos Fundos, começa um exercício doloroso de solidão. O recém separado editor de vídeos percebe que aos poucos todas as pessoas vão simplesmente desaparecendo de sua vida, das suas fotos, das revistas e dos filmes. Em um primeiro momento tudo aparenta ser uma condição patológica fruto da má genética herdada de seu avô. Mas o que acompanhamos é muito mais subjetivo e verossímil, o final do seu relacionamento é repentino e traumático, além disso, ficar sozinho e se ver obrigado a voltar à casa de sua mãe, retornar aos clubes e rolês é difícil para um jovem adulto que acreditava ter alcançado a paz e o sossego. 

Porém, esta curiosa condição revela uma nova e perigosa perspectiva: transformar-se em editor de documentários sobre a natureza, nos quais não há necessidade de pessoas na tela. Assim, aos poucos, o jovem vai acostumando, vivendo uma espécie de profecia pré-pandêmica, afinal, esta agora é a condição que a vida lhe impôs. Bruno, como muitos, cai nos braços sedutores da solidão. Estar sempre sozinho é servir um belo banquete para muitos convidados íntimos, em que todos jantam, mas só um exige perfeição do chef, a insegurança. É fácil criar a autoimagem do romântico leitor de (insira aqui o seu escritor triste favorito), sob a meia luz, torcendo pela próxima noite chuvosa, enquanto ouve um disco de mais uma daquelas bandas melancólicas em uma selva de pedra qualquer.

Em 1882, Machado de Assis publicou o conto “O Espelho”, apresentando a teoria das duas almas, a exterior e a interior. A primeira é a representação concreta de qualquer objeto ou anseio (um militar, por exemplo, acredita que sua farda lhe define), enquanto a segunda é a alma tradicional, espiritual e intangível. A alma exterior é visível quando olhamos para o espelho, mas é sobretudo o que eu desejo ser, maquiado por alguma roupa, acessório ou, neste caso, uma ideia: a falsa noção de que estar constantemente só é um grande projeto pessoal necessário. O protagonista machadiano, atormentado pela alma exterior criada para si, permanece solitário por inúmeros dias, gastando horas e mais horas em frente ao espelho, reafirmando uma posição que parece confortável, mas apontava para uma grande apatia. Aquela imagem reproduzida deixa de ser um instrumento e se torna uma obsessão, então o jovem suprime a sua alma interior e, por insegurança e necessidade de autoafirmação, permanece solitário.

O Bruxo do Cosme Velho, gênio que foi, com a teoria das almas já antecipava uma palavra da moda, um estado positivo de privação: a solitude. Este sim, movimento necessário, difícil, mas real e sem paixões. A nossa alma interior necessita, em boa medida, de sobriedade e boas doses de razão. Já a solidão, fera devoradora, voraz, precisa de atenção exclusiva, exige demais e, como todo péssimo convidado, nunca sabe a hora de ir embora.

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