quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Novidades no Now/VOD - O Que Ficou Para Trás (His House)

De: Remi Weekes. Com Sope Dirisu, Wunmi Musaki, Matt Smith e Vivien Bridson. Terror psicológico / Drama, Reino Unido, 2020, 93 minutos.

"Seus fantasmas seguem você. Eles nunca vão embora. Eles vivem com você. E quando eu os incorporei, eu pude começar a me encarar." Um filme de terror cheio de metáforas que falam sobre traumas de guerra, xenofobia, perseguição a refugiados, religião, racismo, culpa e redenção. Assim é O Que Ficou Para Trás (His House), inesperada obra da Netflix que não apenas dá uma oxigenada nos filmes que utilizam o sobrenatural como recurso, como ainda o faz de forma inteligente, elegante e com profundo respeito à inteligência do espectador. Sim, é um filme com muito menos jump scares e muito mais reflexões sobre como o peso dos conflitos bélicos pode acompanhar os envolvidos por muito tempo, mesmo diante da oportunidade de uma "nova vida". Afinal de contas, a psicologia explica: é no inconsciente que ficam guardados os nossos medos, aflições, inquietações, tristezas. E bastará um pequeno gatilho para que todo o tormento venha à tona. 

Na trama acompanhamos o casal Bol (Sope Dirisu) e Rial (Wunmi Musaki). Eles são refugiados do Sudão - República do Norte da África marcada por fortes conflitos étnicos -, que vão parar em Londres, na Inglaterra, onde são enviados pelo Estado para uma modesta casa, em que poderão (tentar) recomeçar. Desde o começo a gente entende que a travessia para tentar fugir de seu País de origem foi marcada por uma tragédia: a filha do casal foi "tragada" pelo mar e encarar a realidade também sem ela fará parte do desafio. Só que não demora para que ambos passem a ouvir ruídos estranhos - que parecem vir especialmente das paredes da decadente residência -, que virão acompanhados de outros acontecimentos esquisitos, numa mistura de sonho e realidade, alucinação e lucidez. Vozes, sussurros, batidas inesperadas, sons que se misturam dentro e fora de casa... aos poucos a tensão vai aumentando, tornando quase insustentável a relação dos dois.


E por mais que o primeiro terço da película nos passe a impressão de estarmos diante de um horror convencional - com direito a espectros de monstros surgindo pelos cantos, pelas frestas -, não demora para que percebamos que essas criaturas terríveis são reflexo dos traumas variados sofridos no Sudão de origem. A guerra, afinal, dificilmente termina para aqueles que a viveram. Ela segue bastante viva, debaixo das camadas do consciente, teimando em voltar. Vale o mesmo para quem passa por um grande trauma e tem dificuldade em superá-lo. O que dificilmente depende da geografia do local que se está. Por mais decrépita e decadente que seja a casa - aliás, num belíssimo trabalho de desenho de produção -, o sentimento de culpa por tudo aquilo que ocorreu no passado pode ser tão "sujo" quanto os restos de pizza cobertos por baratas ou pelo lixo abundante que adorna o jardim do local. O instinto de sobrevivência pode fazer o seu humano tomar atitudes extremas, mas, como lidar com toda a carga que vem após as atitudes que tomamos?

Tudo isso torna O Quer Ficou Para Trás uma viva experiência que ainda mistura de forma refinada cultura, folclore e misticismo. Deixar para trás as suas origens, as suas crenças também pode ser algo difícil e o filme faz essa transição de forma simbólica, mas sem jamais ignorar o poder daquilo que carregamos conosco. Que nos representa. Que nos dá sentido. Sejam as roupas, as maquiagens, as tatuagens. A música, os cantos, os ritos. Aquilo que jamais sairá da "pele" de Bol e de Rial. Que está marcado em suas almas. E o que os tornará tão "diferentes" dos ingleses branquelos, com seus hábitos insípidos. Aliás, o filme não se furta em escancarar o absurdo do racismo e da xenofobia mais de uma vez, ao mostrar o lamentável tratamento dado pelos britânicos aos refugiados (e a cena em que Bol entra em uma loja com o objetivo de comprar roupas, sendo vigiado de perto pelo segurança, dá conta disso). Inteligente, profundo e, por que não, cheio de bons (e instigantes) sustos, O Que Ficou Para Trás atualiza o filme de terror o levando para além dos sustos fáceis ou bobos. Há um poder maior em cada frame. E isso faz a experiência valer muito a pena.

Nota: 8,0

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