quinta-feira, 6 de junho de 2019

Cinemúsica - Trainspotting: Sem Limites (Trainspotting)

Impossível pensar em Trainspotting: Sem Limites (Trainspotting) e não lembrar do amontoado de cenas icônicas que essa verdadeira joia do cinema alternativo e da cultura pop possui. Seja o bebê que caminha ameaçadoramente no teto do quarto decrépito de Renton (Ewan McGregor) ou mesmo o clássico "mergulho" em um vaso sanitário naquele que provavelmente é o pior banheiro de bar de Edimburgo (ou da história), o caso é que a película de Danny Boyle é uma verdadeira coleção de sequências delirantes a respeito dos efeitos do uso (e da abstenção) de heroína, por um grupo de desajustados que tem como único propósito de vida levantar, decidir qual vai ser a maracutaia do dia para garantir a manutenção das doses diárias da droga, e seguir a vida. De forma letárgica, torpe, sem propósito. Uma existência vazia, oca, pálida, como é a cara pálida do inesquecível protagonista.

Na época do lançamento do filme houve muita discussão a respeito de uma suposta glamourização do uso de drogas mas, vamos combinar que não. E assistir às doloridas sequências em que Renton está "preso" pelos pais em seu quarto como forma de garantir a sua reabilitação, em completa abstinência, são a prova disso. E nem precisamos comentar a cena em que o já citado bebê morre, resultado da negligência de um grupo de jovens que se entope de drogas, como forma de fugir de um mundo de merda. Por outro lado, é inegável a crítica que a película faz às convenções sociais que exigem das pessoas um bom casamento, uma casa (com hipoteca), uma vidinha ordinária com filhos, uma tevê de tamanho grande, a programação dominical, uma máquina de lavar, boa saúde, colesterol baixo, plano odontológico, salário fixo, Natal em família, tudo de acordo com o script, até o dia da morte. Os "vícios morais" da sociedade, se é possível fazer um trocadilho.


Mas vamos combinar que talvez o filme não funcionasse tão bem, se não fosse a sua inesquecível trilha sonora. Cada momento - divertido, urgente, violento, urbano - é movido por uma trilha sonora quase onipresente, que contribui de maneira genuína para a fluidez narrativa, saltando de uma sequência a outra de forma natural, por mais que o caos esteja estabelecido naquilo que assistimos. Aliás, a película já começa com Renton em fuga enquanto a sinuosa Lust for Life do Iggy Pop ecoa ao fundo com suas letras sobre ter "tesão pela vida" por motivos como trago e drogas - alguma semelhança com o que assistiremos naqueles 90 minutos seguintes? Aliás, nesse sentido, é inacreditável a capacidade que a trilha, selecionada por Tristram Penna, tem de "traduzir", seja com com seus ruídos, sintetizadores, pegada roqueira e letras foderosas, as sensações a respeito daquilo que acompanhamos. É como se fosse um espelho, uma paisagem sonora, permanente, natural, orgânica, diegética. Mas sem ser.

Isso é algo que fica claro, por exemplo, nas emanações etéreas de Deep Blue Day de Brian Eno, que transformam o já mencionado mergulho no vaso em um devaneio transcendental em meio à bosta. No andamento da película, um encontro com artistas variados, como Ice MC, Pulp, Elastica, Lou Reed, Damon Albarn e Underworld - esta última emprestando a sua hipnótica Born Slippy (Nuxx) para uma inesquecível e borbulhante viagem em um clube local. É tudo como se fosse uma aula de música junto com um filme - e é uma verdadeira pena que David Bowie não tenha aceitado participar da trilha, em um filme que combinava tanto com o espírito daquilo que ele pregava (não da apologia ao uso de drogas em si, mas da vida encarada com um espírito mais iconoclasta, subversivo e que questionava o status quo). Uma revisão de Trainspotting faz com que percebamos que a obra de Danny Boyle - que recebeu uma bem-vinda continuação recentemente - não envelheceu nadinha. Assim como não envelhece jamais a crítica a hipocrisia dominante em nossa sociedade.


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