segunda-feira, 24 de junho de 2019

Picanha.doc - Democracia Em Vertigem

De: Petra Costa. Documentário, Brasil, 2019, 119 minutos.

Em uma das tantas passagens marcantes do incrível Democracia em Vertigem da diretora Petra Costa, a presidente Dilma Rousseff está em vias de sofrer o impeachment. Diante de um bando de "homens de bem", defensores da família engravatados, uma estadista de cabeça erguida afirma que sentiu medo da morte apenas duas vezes na vida: quando foi torturada durante a Ditadura Militar e quando padeceu de um câncer, cerca de 10 anos atrás. "Hoje, eu só temo a morte da democracia", finaliza ela. Esse momento hoje já clássico da nossa política moderna, talvez seja o resumo perfeito do espírito que rege o documentário: o de perceber como a nossa ainda jovem democracia pode estar, diante de tantos desastrosos eventos recentes, sucumbindo. O que nos direciona, nas palavras da própria Petra, "para um futuro tão sombrio quanto o nosso passado mais obscuro e que faz cair a máscara da civilidade".

Para narrar essa história da derrocada da democracia como a conhecemos, a documentarista traça um paralelo em que a sua vida pessoal e a de sua família se cruzam com os eventos políticos recentes. O que humaniza (ainda mais) a obra, afinal de contas a história de esperança dela, poderia ser a história de esperança de cada um de nós. Tomando como ponto de partida as eleições que culminariam no primeiro governo do presidente Lula - ocasião em que Petra votou pela primeira vez -, a diretora recorda, com vibrantes imagens de arquivo, as manifestações dos metalúrgicos do ABC em 1979 e as sequenciais derrotas em pleitos até que, em 2002, ocorre a primeira vitória de Lula nas urnas. As conquistas sociais, com famílias vulneráveis saindo da linha de pobreza extrema, o desemprego em apenas 4% e estabilidade econômica também são recordados. Ao mesmo tempo, o filme não ignora eventos como o Mensalão - que prendeu líderes do PT -, e as alianças com desastrosas siglas, ligadas à velha oligarquia do País, caso do PMDB que, no fim das contas, culminaria no Golpe.


Todo esse didatismo da diretora, é apresentado com grande riqueza de imagens de arquivo, conversas de bastidores, entrevistas variadas e mesmo belas tomadas de câmera (especialmente aquelas de Brasília vista de cima, desde a sua construção, até os dias de hoje). Petra adota um tom melancólico em sua narrativa e chama a atenção para questões que passaram despercebidas por todos nós - caso do "abismo" que havia entre Temer e Dilma quando da posse da segunda como presidente ou mesmo episódios constrangedores como o dos procuradores da Lava-Jato admitindo não haver provas contra Lula em relação a ele ser proprietário do triplex, fazendo ao mesmo tempo a opinião pública acreditar que a ausência de provas seria a prova em si. (e, nesse sentido, não poderia haver melhor timing para o lançamento da obra do que esta ocorrer na mesma semana em que tiveram início os vazamentos de documentos do Intercept, que comprovam a farsa da operação como um todo).

Durante o filme, a diretora repassa diversos episódios recentes e marcantes de nossa política, caso dos protestos pelo aumento das passagens em 2013, dos equívocos - especialmente na seara econômica - da Dilma, da ascensão de uma extrema-direita difusa e incendiária (que gestaria Bolsonaro) e da vergonha que perpetrou um impeachment baseado em "pedaladas fiscais". No decorrer da narrativa, Petra obtém ricas entrevistas - especialmente com Dilma que recorda, de forma comovente, a prisão e a tortura durante a ditadura (impossível não se emocionar na cena em que ela "explica" como aguentava as agressões de seus torturadores), a resistência em se tornar candidata a presidência e a forma como recebeu a notícia de que estava sendo destituída do cargo. Tudo se descortinando sem sensacionalismo, de forma naturalista, com a câmera próxima do rosto dos envolvidos, o que confere um espírito de cumplicidade ainda maior com aqueles que assistimos.


Utilizando-se de citações à Kafka (O Processo) e Shakespeare e com trilha sonora que conta com composições como Canto de Ossanha, do Vinícius de Moraes, Petra Costa constrói um verdadeiro documento de nosso tempo, que apresenta a democracia conquistada como uma espécie de "sonho efêmero". Recheado por frases fortes, imagens impactantes (e revoltantes) e eventos marcantes, a película dá conta de um País que se mostra atualmente dividido, com seu tecido social fissurado e com pouquíssima possibilidade de conciliação. "Democracias frágeis tem uma vantagem sobre as sólidas: elas sabem quando acabam", narra Petra sem esconder o desalento. Ainda é cedo para saber se a nossa, de fato, acabou, mas seguimos esperando que a primavera chegue e assim se acabe a matança de rosas. E o que esse filme monumental - que já tem sido apontado como um dos possíveis candidatos para a categoria Melhor Documentário no próximo Oscar - consegue, é nos fazer prestar ainda mais atenção nisso tudo.

Um comentário:

  1. A cena em que os parlamentares, incluindo o atual presidente, ficam desdenhando e tirando sarro da Benedita da Silva, mulher negra e de esquerda, é aterradora.

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