De sonho e de sangue
E de América do Sul
Por força deste destino
Um tango argentino
Me vai bem melhor que um blues
Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 76
E eu quero é que esse canto torto
Feito faca, corte a carne de vocês
A Palo Seco - Belchior
Poucas vezes o desencanto e a letargia de uma geração foram tão bem retratados em um disco, como no clássico Alucinação, lançado em 1976 pelo cantor Belchior. Com apenas 30 anos na época do lançamento do trabalho, o cearense de Sobral sentia que a mesma juventude que poucos anos atrás abraçava a bandeira do flower power e de outros movimentos que tomavam por base o espírito iconoclasta e anárquico das revoluções - fossem elas políticas, sociais ou culturais - agora se entregava a um estilo de vida conformista e que se espelhava na lógica de existência de nossos antepassados. Condição em que ideais mais libertários e questionadores do status quo davam lugar a apatia. Onde estaria o clamor? A luta? Teriam os jovens se cansado disso, se transformando em uma massa que, agora madura, se alinhava a ideais mais moderados, se mantendo passiva?
Era latente o lamento do compositor, que não se furtava de utilizar a sua voz à moda dos poetas repentistas e melancólicos do Nordeste para denunciar a condição que se estabelecia. Fosse em canções com uma poética mais direta, caso de Como Nossos Pais - E hoje eu sei, eu sei / Que quem me deu a ideia / De uma nova consciência / E juventude / Está em casa / Guardado por Deus / Contando os seus metais - ou mesmo em linguagem mais figurada, como em Velha Roupa Colorida - Nunca mais meu pai falou: She's leaving home / E meteu o pé na estrada, Like a Rolling Stone / Nunca mais eu convidei minha menina / Para correr no meu carro (loucura, chiclete e som) / Nunca mais você saiu a rua em grupo reunido / O dedo em V, cabelo ao vento, amor e flor -, era possível identificar em sua lírica o desgosto por ver a vida de uma geração inteira passando sem que se pudesse "sair do chão".
É evidente o fato de não se poder ignorar o contexto político da época, no Brasil. Ainda que o governo de Ernesto Geisel apontasse para uma abertura institucional lenta, gradual e segura - período que ficou conhecido como "distensão" - eram latentes as feridas de uma ditadura militar que sugou da juventude da época toda a sua capacidade de mobilização. Não é por acaso que, consciente do poder das palavras e do que elas poderiam representar para quem as ouvisse, Belchior também transforma Alucinação em um veículo de amparo em que a empatia, a consciência social e o senso de justiça falavam mais alto. Assim, quando canta na espetacular Fotografia 3X4 que A minha história é talvez / É talvez igual a tua, jovem que desceu do norte / Que no sul viveu na rua / Que ficou desnorteado, como é comum no seu tempo, canta como alguém que reconhece esta realidade como sua, bem como as implicações necessárias para uma adequadão a esse modo de vida.
Nesse sentido, é possível constatar que, em cada curva do trabalho, em cada lamento em verso e prosa, era também para as camadas mais desfavorecidas ou em vulnerabilidade social que Belchior destinava as suas conjurações. Para o preto, o pobre, a mulher sozinha ou os humilhados, além do já citado estudante, como na clássica canção-título. Mas a eventual contestação do artista não se insurgia em um sentido de afronta do ponto de vista bélico. E jamais se mostrava desalinhada a seu tempo. Pelo contrário, a sua melancolia doce, ainda encontrava espaço para o bom humor em meio as dificuldades - como não sorrir desajeitadamente com as desventuras do protagonista de Apenas Um Rapaz Latino Americano - e para um sem fim de citações culturais - Laranja Mecânica, hot dog, Isaac Newton, cabarés, Rolling Stones, Edgar Allan Poe, tiros no salloon - capaz de transformar cada canção em um verdadeiro almanaque das coisas, de tudo, enfim, do mundo.
Com Alucinação Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes - que completa 70 anos, hoje - não fez apenas o seu melhor disco. Fez um verdadeiro tratado sobre a vida na América do Sul, suas dificuldades, superações de obstáculos, diferenças culturais e sociais e mesmo de resistência ao capitalismo e de forças limitadoras que vem varrendo tudo, transformando as pessoas em uma massa cinza, sem vida, alienada e vazia em ideias. Um álbum não apenas artístico, ainda que "fácil" do ponto de vista instrumental, e recheado de hits, mas que utiliza o poder da fala para "rasgar a carne" de quem o escuta - como metaforiza o cantor em A Palo Seco (uma das melhores músicas brasileiras da história). Como que se fizesse força para acordar as pessoas na marra, no grito, no choro se for preciso. Quarenta anos depois de seu lançamento, o álbum nunca foi tão atual, afinal de contas as novas gerações de hoje em dia poucas vezes imitaram tão bem o modus operandi de seus pais - e seu comportamento eventualmente anacrônico. Mas certamente ainda há quem prefira o tango argentino ao blues. É para estes que Belchior destinou seu lugar de fala. Onde quer que ele esteja nesse momento - no Uruguai, em Porto Alegre ou no mundo.
Então é para mim também, que prefiro o tango argentino:
ResponderExcluir"Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos lhe direi
Amigo eu me desesperava"
Parabéns, excelente postagem.
Interessante que poetas desse calibre estarão sempre atuais. Grande trabalho, do Belchior e do Picanha!!!
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