quinta-feira, 27 de junho de 2019

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Timbuktu (Mauritânia)

De: Abderrahmane Sissako. Com Ibrahim Ahmed, Toulou Kiki e Layla Walet Mohamed. Drama, Mauritânia / França, 2014, 96 minutos.

Em uma das tantas cenas desoladoras do melancólico Timbuktu (Timbuktu) um grupo de crianças joga futebol. Mas com um detalhe: sem a bola. Dezenas de crianças e adolescentes com abrigos falsificados da Adidas e camisetas de craques como o Messi correm desvairadamente em uma espécie de balé em que o esporte mais popular do planeta é apenas um faz de conta. A bola foi confiscada pelos militares, afinal de contas é proibido jogar futebol no norte de Mali, local ocupado por extremistas religiosos jihadistas e onde ocorre a ação do filme. Aliás, não é só o futebol que é proibido. Ouvir (e produzir) música também é. Fumar. Enfim, existir. Para as mulheres é ainda pior: além de terem de conviver com uma sociedade patriarcal que lhes determina praticamente tudo que ocorre em suas existências - do casamento arranjado até o que elas devem vestir -, ainda há o risco de morrer em caso de tentativa de fuga desse sistema.

Não é preciso ser um especialista em contextos político/religiosos/sociais de países africanos para saber que a equação fanatismo religioso mais militarismo dificilmente dá certo em algum lugar. E se esses seis meses de Bolsonaro já nos deram uma mostra do que é um Governo ditatorial - com imprensa sendo censurada, políticos de outras correntes sendo ameaçados de morte e cortes generalizados em políticas públicas e programas que destroçam as camadas mais vulneráveis da população -, o que dizer de um povo em que quase a totalidade de seus habitantes vive abaixo da linha da pobreza, muitos deles morando em regiões áridas que, de quebra, ainda são controladas por militares? A situação parece ser ainda mais crítica ao norte onde milícias armadas tornam o local uma espécie de terra sem lei - ou melhor, com o Islã (e o que determina Alá) e os jihadistas sendo a lei.


Sobre o filme, é preciso salientar que não há um protagonista específico, havendo um núcleo em que a morte "acidental" de uma vaca se torna o principal episódio. Só que Kidane (Ibrahim Ahmed) o proprietário do rebanho que teve a vaca sacrificada resolve ir tirar satisfação com o responsável pela morte do animal. Resultado: após uma briga entre os dois sujeitos, o reclamante mata o outro. E, tomado como assassino, ele fica a mercê das duras leis locais, que prevem pena de morte para esses casos. Não adianta ter esposa, ter uma filha e estar arrependido do ocorrido. Está tudo nas mãos de Alá e, Alá, tal qual o Deus do Velho Testamento, parece gostar é de ver sangue derramado. E enquanto o julgamento do protagonista não ocorre, outros pequenos episódios vão se descortinando, caso da morte por apedrejamento de um casal adúltero, da punição a um homem que jogou futebol e de uma sequência infinita de chibatadas para um grupo de jovens que INVENTOU de tocar violão e percussão.

O filme é dolorido porque mostra que nessas terras sem lei, a lei na verdade é subjetiva, como atesta a cena em que um dos líderes dos militares aparece fumando (o que é proibido). E se o adultério é proibido, por que pessoas ligadas a autoridades religiosas locais insistem em assediar Satima (Toulou Kiki) uma mulher casada? Na obra, pequenos momentos de resistência - como o da mulher que pede que suas mãos sejam cortadas (ela se recusa a usar luvas) ou de uma mãe que nega entregar a sua filha para ser desposada por um desconhecido - são apenas pequenos respiros que, de forma circular, farão com que a ponta mais fraca dessa equação acabe sofrendo as consequências mais adiante. No fim o que fica nem é tanto a crítica à ocidentalização dos países islâmicos e sim a interminável guerra entre diferentes vertentes religiosas do islã. No diálogo inicial entre Kidane e Satima as dúvidas sobre o futuro, sobre fugir desse local, sobre se libertar - o que de maneira simbólica é, de alguma forma, alcançado na espetacular sequência final desse poético e arrebatador filme.

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