terça-feira, 3 de março de 2015

Lado B Classe A - Wilco (Yankee Hotel Foxtrot)

Das cinzas da banda norte-americana de country-rock Uncle Tupelo (1987-1994) nasceram duas bandas: Son Volt, comandada por Jay Farrar, e o Wilco, por Jeff Tweedy. Esta última acabou por ser mais bem sucedida no meio musical, o que não invalida de forma alguma o belo trabalho de Farrar e seus comparsas. No entanto, o Wilco, com sua discografia sem pontos fora da reta, acabou por se tornar uma das bandas favoritas deste que vos fala. Inclusive, o presidente norte-americano Barack Obama já demonstrou publicamente por diversas vezes o seu apreço pelo grupo de Chicago.

O primeiro álbum (A.M., de 1995), é country-rock na sua forma mais pura, com o Wilco representando o que atualmente conhecemos por Alt. Country ("country alternativo"), tendo como referência artistas da música tradicional americana, porém atualizando e introduzindo toques do rock alternativo que tanto gerou obras influentes nos anos 90. No segundo álbum (Being There, de 1996), a banda dá um passo além, com fortes influências ainda do country e do folk, mais uma certa dose de experimentalismo em faixas mais longas - o que acabou por tornar este um álbum duplo. Com Summerteeth (1999) o apreço por efeitos eletrônicos e o power pop acabam por elevar o som do grupo a outro patamar, mas sem perder por completo as características dos álbuns anteriores. Mas é com o já clássico Yankee Hotel Foxtrot, de 2002, que a banda viria a cravar de vez o seu nome na história da música.


Explico: durante as gravações do disco, o líder Jeff Tweedy se desentendeu com Jay Bennet, guitarrista/tecladista e um dos principais compositores, por divergências em relação à produção e roupagem das canções - ocasionando a demissão de Bennet. Com todo o instrumental gravado, Tweedy achou que as canções estavam "retinhas" demais - o que repercutiu na contratação do produtor Jim O'Rourke, famoso por seu trabalho solo e por produzir bandas como Sonic Youth, que acabou por desconstruir completamente a obra. Com toda a mixagem refeita, as canções do disco obtiveram uma sonoridade bem mais experimental e desafiadora, uma receita bastante original diga-se de passagem, com o uso de violões (sem guitarras elétricas) misturados a efeitos eletrônicos, ruídos, microfonias, que viriam a complementar o conceito do álbum: a falta de comunicação.

Wilco, na época da divulgação do álbum, já sem Jay Bennet

Yankee Hotel Foxtrot é um código utilizado em rádio amador que, aqui, serve de metáfora para os problemas de comunicação dos tempos modernos, principalmente quanto aos relacionamentos - tanto amorosos quanto interpessoais. O álbum, influenciado por discos como Third/Sister Lovers, do Big Star, e Blood on the Tracks, de Bob Dylan, é triste, desesperançoso, e muito pessoal. Logo na primeira faixa, Tweedy avisa: I Am Trying to Break Your Heart ("Estou tentando partir seu coração") para na sequência, em Kamera pedir: Phone my family / tell them I'm lost on the sidewalk / and no, it's not ok ("ligue pra minha família, diga-lhes que estou perdido no acostamento e, não, não está tudo bem"). Radio Cure fala da impossibilidade dos relacionamentos à distância, enquanto War on War versa sobre nossas derrotas diárias e aconselha: You have to learn how to die / If you wanna be alive ("você precisa aprender a morrer, se quiser continuar vivo"). Jesus, etc é uma linda canção, que foi escolhida como single sendo, inclusive, considerada uma das 100 melhores canções dos anos 2000 pela revista Rolling Stone. Ashes of American Flags é uma faixa mais política, densa - por sinal, a capa do disco faz alusão às torres gêmeas que foram atacadas no ano anterior ao lançamento.

Com Heavy Metal Drummer o disco dá uma respirada, em sua faixa mais animada porém de teor nostálgico. I'm the Man Who Loves You também mantem o pique, com sua bela letra e declaração de amor: If I could you know I would just hold your hand and you'll understand / I'm the man who loves you ("se eu pudesse apenas seguraria sua mão e você entenderia: eu sou o homem que te ama"). Pot Kettle Black tem cara de hit, enquanto Poor Places é triste e lenta, com um final experimental. Reservations encerra esta obra-prima de forma bela e melancólica, cantando sob orquestrações: I got reservations / about so many things / but not about you ("eu possuo reservas sobre muitas coisas, mas não sobre você").

A gravadora, na época, pediu para que o álbum fosse refeito por considerá-lo "anti-comercial". Tweedy e cia negaram o pedido, o que resultou no não lançamento pela gravadora e a ruptura do contrato. A banda obteve os direitos do disco e optou por lançá-lo na internet, o que simultaneamente acabou por fazer com que o mesmo fosse alçado à categoria de clássico instantâneo - ganhando elogios fartos tanto dos fãs quanto da crítica especializada, que atualmente o considera um dos grandes da década passada. Com o sucesso de Yankee Hotel Foxtrot, a gravadora voltou atrás, comprando os direitos da obra e lançando-o comercialmente, numa belíssima ironia do destino (eles acabaram pagando, na verdade, duas vezes pelo disco), onde a arte não cedeu a interesses comerciais e, mesmo assim, obteve sucesso em ambas as instâncias. Um disco fundamental!

P.S.: Toda a saga sobre a gravação e conflitos com a gravadora foram retratados no belíssimo documentário de Sam Jones, I Am Trying to Break Your Heart. Se você é fã da banda, corra atrás!

Ouça:

Um comentário: