quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Livro do Mês - O Negociante de Inícios de Romance (Matéi Visniec)

"Ele era um velho que pescava sozinho num esquife na Corrente do Golfo e saíra havia já oitenta e quatro dias sem apanhar um peixe". A primeira frase de o Velho e o Mar, clássico de Ernest Hemingway, é daquelas que faz com que o leitor sequer saiba onde exatamente está a gravidade da situação. "No fato de o personagem estar sozinho? Ou no de ser velho? Ou de pescar numa zona por onde passa a famosa Corrente do Golfo, conhecida por seus redemoinhos? Ou ainda, no fato de não apanhar peixe já há quase três meses?" É por meio de um conjunto de divagações bem humoradas como estas, que Matéi Visniec converte o divertidamente cínico O Negociante de Inícios de Romance em uma experiência caleidoscópica sobre contemporaneidade, indústria cultural e sociedade de consumo, apresentando a urgência da busca pelos "eternos começos" em uma metáfora absurdamente mundana a respeito de fuga de responsabilidades, superficialidade da vida e completa evasão de profundidade de pensamentos.

Pode parecer um papo chato em um primeiro momento, mas o romance do autor romeno é, um dos mais curiosos, excêntricos, cômicos e metalinguísticos livros que já li. Ainda na apresentação de sua obra, Visniéc indaga: "por quê, afinal, parecemos estar com o botão de fast forward cada vez mais pressionado nos dias de hoje?" A sensação geral é a de que a população tem filhos, mas já não tem paciência pra criá-los. Compra coisas das quais logo se enfastia. Provoca revoluções, mas não tem energia para construir sociedades justas e duradouras que avancem para além das emoções iniciais. Presos nesse senso de necessidade de consumir tudo quanto é coisa ao mesmo tempo, ficamos mais ou menos como o sujeito que desenvolve a Síndrome do FOMO (do inglês Fear of Missing Out), patologia que envolve o receio de ficar de fora do universo tecnológico ou de se sentir incapaz de se desenvolver no mesmo ritmo destas. Quem nunca ficou com a impressão de que estava ficando pra trás, afinal?



Cruzando questões relativas à pós-modernidade que se conecta à literatura como veículo de enfrentamento ao totalitarismo, o escritor nos conduz por um universo onírico - meio de sonho, meio de realismo fantástico - onde um aspirante a escritor conhece um sujeito misterioso que se apresenta como agente de uma empresa responsável pela criação de frases de abertura de romances universais de Albert Camus, Franz Kafka, H.G. Wells, Hermann Melville e Thomas Mann, entre outros. Percorrendo as ruas de Paris - e suas passagens estreitas que levam à cafés, restaurantes, galerias de arte, antiquários e outros -, o protagonista alcançará a livraria Verdeau, que será o ponto de encontro para a troca de uma série de correspondências com o enigmático Guy Courtois, que mantém a promessa de lhe entregar, a qualquer momento, a sentença de abertura que poderá transformar a sua ainda discreta existência como romancista. Conferindo-lhe mais credibilidade, potencialidade. Algo que gere a adrenalina da excitação inicial.

Em meio a esses diálogos abusadamente caóticos e engraçados e a promessa de glória futura, uma espécie de revolução literária se põe em marcha, com a criação de uma tecnologia que parece ser capaz de traduzir sentimentos em palavras. Seria o fim da figura do escritor? Das reflexões genuínas sobre vida, morte e além, que seriam paulatinamente substituídas pela mera banalidade cotidiana? Em trechos de poemas nunca concluídos e de um romance dentro de um romance - sobre um sujeito que se depara com o desaparecimento de todas as pessoas do planeta, o que lhe obrigará a construir uma nova vida pra si  -, o livro funciona como uma alegoria sobre passagem do tempo, burocracias e alienação. Sendo provocativo na medida exata na hora de apresentar a frenética e moderna cultura da diversão como uma chaga de nosso tempo, o romance satiriza a hipocrisia do ideal do sonho americano (que é vivido pelo irmão mais velho do narrador), ao passo em que discute o absurdo de a Romênia jamais ter ganho uma edição que fosse do Prêmio Nobel de Literatura. Muita coisa acontece nesse livro que é uma joia da versatilidade, da graça e da erudição, sendo capaz de divagar de forma assombrosa sobre essa nova droga social da contemporaneidade: a da dependência da ilusão sedutora dos inícios. Incrível é pouco.

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