segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Tesouros Cinéfilos - Speak No Evil

De: Christian Tafdrup. Com Sidsem Siem Koch, Fedja Van Huêt, Morten Burian e Karina Smulders. Terror, Dinamarca / Holanda, 2022, 97 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM SPOILERS]

Quando crianças nos acostumamos a ouvir de nossos zelosos pais frases como "não converse com estranhos na rua". Mas e os adultos? Quem os alerta para os perigos decorrentes das convenções sociais? Quais os riscos que incorrem de uma vida de passividade em que apenas aceitamos tudo? Sem questionar nada? Nesse sentido pode parecer uma experiência excessivamente chocante aquela que propõe o diretor Christian Tafdrup em Speak No Evil. A tragédia pela tragédia, o mal que vêm não se sabe de onde, a violência cotidiana - que pode, inclusive, se esconder atrás dos modos cordiais ou de uma gentileza de fachada. Mas, ao cabo, a questão aqui - a metáfora - soa como uma análise mais ampla sobre nosso comportamento. Não estamos, afinal, sendo meio apáticos diante de tudo nesse mundo? Meio indiferentes? Guerras, pandemia, extremismo de direita, abusos de poder político e religioso. Fome, miséria, desemprego, inflação. Corrupção. Até quando somos capazes de levar porrada permanecendo letárgicos? Qual o limite do aceitável? Em que ocasião dizemos: "basta, deu!".

Enquanto assistia à essa pequena joia do cinema de terror eu pensava, inevitavelmente, no Brasil de Bolsonaro. No Brasil em que um presidente no auge da maior pandemia global desse século afirmou sem nenhum assombro que "não era coveiro". "E daí, as pessoas morrem, quer que faça o quê?". Mais do que isso, imitou pessoas sofrendo com falta de ar. Debochou das famílias e de seu luto. Andou de jetski, fazendo do País o seu palanque permanente. Usando de quebra dinheiro público - o seu, o nosso - para colocar em prática as suas intenções macabras. E o que nós, brasileiros, fizemos diante de tudo isso? Permanecemos quietos, amedrontados. Em silêncio, reclamando no Twitter - no máximo com um amigo, um vizinho. Todos nós, coletivamente. Insatisfeitos, mas silenciosos. Não se viu impeachment, revolta popular, motim, greve geral, qualquer coisa. Negligentes, fomos os trouxas que receberam uma enxurrada de merda na cabeça com um desinteresse alarmante. Ao perguntar por quê fizeram isso conosco, Jair poderia ter dito: "oras, vocês apenas permitiram".



Ok, posso estar forçando a barra aqui nessa análise, enxergando alegoria e significado a mais onde talvez nem tenha. Sinceramente não fui atrás de entrevistas do diretor para saber de suas intenções, mas, interpretações no mundo das artes, são apenas isso, interpretações. E aqui estamos no Brasil e não na Europa. Aliás, na trama, uma família dinamarquesa de férias na Toscana faz amizade com uma família de holandeses que os convida para um final de semana em sua casa de campo. Mesmo tendo os conhecido a pouco tempo o casal Louise e Bjorn (vividos por Sidsem Siem Koch e Morten Burian) pondera sobre a possibilidade de aceitar um convite tão cordial - que é feito por Patrick (Fedja Van Huêt) e Karin (Karina Smulders). A tiracolo vai a filha Agnes (Liva Forsberg), que poderá fazer companhia ao filho dos anfitriões Abel (Marius Damslev). A tensão parece estar no ar a todo o momento e não é preciso ser nenhum adivinho pra saber que o entusiasmo inicial dará lugar, aos poucos, a uma angústia sem fim. E a ambientação criada, que ajuda a não prever muito bem o que vêm pela frente, é um mérito. No nosso íntimo a gente apenas sabe: tem algo errado.

Opostos em comportamento - Louise e Bjorn passam uma imagem mais conservadora, eventualmente tímida e que dialoga com uma espécie de "tédio burguês" ao passo que Patrick e Karin surgem como figuras enérgicas, envolventes -, aos poucos os dois casais se depararão com pequenos inconvenientes que ampliarão a sensação de tensão. No primeiro jantar, Patrick oferece um javali assado aos convidados, mesmo sabendo que Louise é vegetariana. Louise toma banho e vê sua privacidade invadida quando alguém entra no banheiro enquanto ela o ocupa. O filho dos anfitriões não fala, por conta de uma doença congênita que o fez nascer sem língua. O clima na casa vai se tornando mais e mais claustrofóbico dia após dia, conforme o tom vai subindo - o que é reforçado pela trilha sonora bem encaixada e pela fotografia sombria. Sentir que se está em um lugar que não se desejaria estar: taí um sentimento que é péssimo. Quem nunca? Mas o quê fazemos para reverter isso? Nos posicionamos? A lição do filme parece ser aprendida de forma dura. Mas o quê a gente percebe quando os créditos sobem é que os algozes apenas trouxeram à tona a inércia daqueles que eram os perseguidos. Eles permitiram tudo aquilo. Foram atrás de um coelho de pelúcia velho, encardido. E, em meio a tanta passividade, nada puderam fazer pra se salvar. Cruel. Mas, inegavelmente, faz pensar.
 
 

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