De: Neil Jordan. Com Stephen Rea, Jaye Davidson, Forest Whitaker, Miranda Richardson. Drama / Romance / Suspense, Reino Unido, 1992, 112 minutos.
Foi em 2007 que a revista norte-americana Premiére elaborou uma lista com as 25 cenas mais chocantes da história do cinema. Estavam lá momentos memoráveis, como aquele da criatura alienígena destroçando o corpo de um dos passageiros da nave Nostromo, em Alien: O Oitavo Passageiro (1979), a famosa sequência do chuveiro, de Psicose (1960), ou o final impactante de O Sexto Sentido (1999), entre outras. Em um inesperado primeiro lugar, um instante de Traídos Pelo Desejo (The Crying Game) que, talvez nos dias de hoje, não escandalizasse tanto assim. Mas que em 1992 impactaria e geraria estranhamento nas plateias mundo afora. Na sequência em questão o guerrilheiro do IRA Fergus (Stephen Rea) vai atrás da enigmática Dil (Jaye Davidson), namorada do soldado inglês Jody (Forest Whitaker) que é sequestrado e morto pelo exército irlandês. Ele passa a persegui-la, vigiá-la, e se apaixona por ela. Mas quando eles vão ter a primeira noite...
Eu lembro até hoje o quanto eu fui surpreendido quando assisti ao filme de Neil Jordan pela primeira vez, alguns anos depois de seu lançamento. E o mais legal da obra é como, em uma época em que não existiam redes sociais, ela te enganava bonito! Hoje, 30 anos depois, todo mundo sabe que Dil era na realidade uma transexual - e a cena em que ela aparece nua de corpo inteiro, pela primeira vez, exibindo seu pênis, é de um impacto meio inesperado. A gente realmente não imagina, dada a feminilidade da personagem, sempre elegante e sexy em vestidos e botas de salto, que realçam seu corpo esguio. Ainda assim, em retrospectiva, é interessante notar como Jordan parece dar várias pistas do que está por vir - e que vão desde os traços levemente andróginos de Dil, passando pelo fato de ela ser cantora em uma boate gay nas horas vagas, até chegar ao fato de ela demorar bastante tempo pra se revelar mais plenamente, por assim dizer.
E há ainda um ótimo momento em que o afável atendente do bar da boate - seu nome é Col (Jim Broadbent) - parece ter a intenção de "alertar" Fergus sobre algum segredo de Dil, sendo interrompido em um momento determinante. Estava tudo lá, mas essa é, de alguma forma, a mágica do cinema. Assim como no citado O Sexto Sentido - que catapultou todos os espectadores das poltronas em direção à estratosfera com sua revelação final - aqui, o inesperado vem do prosaico, do cotidiano, que confronta de alguma forma a sexualidade heteronormativa, avançando para uma excelente reflexão sobre a paixão (e o amor) acima de tudo. E independente de gênero. Em entrevistas, Rea destacaria mais tarde a ousadia de Jordan em colocar um nu frontal do tipo, em uma época em que isso era raríssimo - sim, é bem diferente das séries da HBO Max nos dias de hoje. "Devo dizer que acho que nunca tinha visto um pênis em tela antes", comentou para a Vulture em 2014.
Penso que outra questão que torna tudo bastante inesperado é a obra iniciar como um thriller político sobre disputas internas na Irlanda. Por cerca de 40 minutos a inesperada amizade entre Fergus e Jody se estabelece - por mais que o primeiro mantenha o segundo como refém. E é justamente o sentimento de culpa pela morte do prisioneiro - que, vale lembrar, é atropelado por um tanque de guerra enquanto tenta fugir - que faz com que nós, como espectadores, também torçamos para que as coisas saiam a contento. E o fato de Dil ser uma figura misteriosa, sexy e determinada torna tudo ainda melhor, nessa virada em direção ao drama romântico que a obra dá (aliás, um tipo de mistura típica dos anos 90). Traídos Pelo Desejo, pela sua coragem e pelo seu atrevimento receberia, com justiça, o Oscar de Melhor Roteiro Original na cerimônia de 1993, sendo nominado ainda em uma série de outras categorias (inclusive Melhor Filme). Hoje, a nudez desse tipo já está bem mais naturalizada. E, muito provavelmente, não renderia tanto falatório como na época.
[Não encontramos a sequência no Youtube, então colocamos essa, da cena do bar]
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