quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Grandes Filmes Nacionais - Cidade de Deus

De: Fernando Meirelles e Kátia Lund. Com Alexandre Rodrigues, Leandro Firmino, Phellipe Haagensen e Seu Jorge. Drama / Policial, Brasil / França / Alemanha, 2002, 129 minutos.

Em uma das tantas cenas impressionantes de Cidade de Deus, Zé Pequeno (Leandro Firmino) circula pela favela que dá nome ao filme, em uma caçada à gangue juvenil conhecida como "caixa baixa". Iniciantes no universo do crime, os caixa baixa não passam de um grupo de trombadinhas pré-adolescentes que efetuam furtos na comunidade - mas que anseiam por voos maiores. Zé Pequeno e seus asseclas encontram os meninos - sim, são meninos de no máximo dez, doze anos - em um beco. E os enquadra. Mais do que isso, tortura-os psicologicamente. Ameaça-os. Grita. Atira no pé de um. Mata outro. A sangue frio. Sem muita negociação. Um dos meninos que sobrevive, e que não deve ter mais do que oito anos, chora copiosamente. De forma comovente. Se havia ainda alguma dúvida a respeito da natureza violenta e assustadora de Zé Pequeno, ela está aqui resolvida. Não se salva ninguém. Adulto, criança, idoso. Playboy, mano, branco, rico, pobre. Qualquer um que ameaçar os seus negócios na Cidade de Deus, é bala.

Baseado em fatos reais, o clássico de Fernando Meirelles e Kátia Lund se tornaria o segundo filme estrangeiro mais visto no mundo - atrás apenas de Intocáveis (2011), a simpática obra francesa. Receberia também quatro indicações ao Oscar. Os méritos, afinal, não são poucos. A começar pelo aparato técnico, que envolve o estilo de filmagem frenético, urgente - que faz lembrar um videoclipe -, passando pela montagem inventiva, trepidante e cheia de trucagens, até chegar ao elenco, composto em sua maioria por atores não profissionais. E este último elemento tem um motivo simples: o de que não havia atores negros no Brasil em número suficiente para esse tipo de filme. Sendo a solução a montagem de uma oficina de teatro no seio da comunidade, e que envolveria um grupo de cem amadores. O resultado? Bom, basta assistir a Leandro Firmino em cena, por exemplo, com sua caracterização furiosa de Zé Pequeno. Aliás, a sentença "Dadinho é o caralho, meu nome é Zé Pequeno porra!" entraria para o imaginário popular como uma das grandes frases do cinema. E não é para menos.

 
Sem ter necessariamente um protagonista - e eu quero evitar a obviedade de falar na própria favela como personagem principal -, a trama é narrada por Buscapé (Alexandre Rodrigues), fotógrafo amador que se vê em meio a uma confusão envolvendo uma galinha, ainda no começo do filme. Ali estamos em meio a uma Cidade de Deus já corrompida, com a ave simbolizando a luta desigual que fará a corda romper pro lado mais fraco. Voltando no tempo, para o começo dos anos 60, seremos apresentados ao conjunto habitacional como um lugar meio idílico, que servia como espaço para realocação de famílias pobres por parte do Estado. É nesse ambiente de partidas de futebol e de comércio informal que se formará o embrião da violência a que seremos apresentados duas décadas mais tarde. Da queda do Trio Ternura a ascensão de Zé Pequeno como chefe de quadrilha, tudo é narrado por Buscapé com olhar de um atento observador. Em meio a disputas de poder, o sangue jorra, ao passo em que os cartéis avançam. É tudo frenético, intenso, quente. O suor, o calor, parecem sempre palpáveis. Saltam da tela.

Orbitando ao redor de Zé Pequeno e Buscapé, outros personagens vão, aos poucos, ganhando espaço. A edição se reorganiza em torno de elipses em que o dito fica pelo não dito. Parceiro de Zé Pequeno, Bené (Phellipe Haagensen) tem personalidade oposta. Ainda que seja um criminoso possui um código de ética mais bem resolvido. Mais do que isso, é mais pacífico que o companheiro. As coisas podem desandar, como desandarão (e a inesquecível sequência do baile de despedida de Bené é mais um daqueles instantes que comovem e assustam). Por fim há ainda Mané Galinha (Seu Jorge), um simples cobrador de ônibus que entrará nesse ciclo de violência para uma tentativa de vingança. Se unindo para isso a Cenoura (Matheus Nachtergaaele), rival de Pequeno. Só que o problema é esse: quem entra, não sai. Quem tenta sair acaba preso. De forma redundante. As punições serão dignas de tragédia shakespereana urbana. Traições, surpresas, reviravoltas. Casos que pareciam resolvidos, mas não estavam. Abandono. Inércia. Ao cabo, o que vai, um dia volta. Comprovando o mais básico dos chavões: o de que violência gera mais violência. Indefinidamente.
 

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