De: Selman Nacar. Com Mucahit Kocak, Burcu Gölgedar, Bedir Bedir e Mehmet Emin Kadihan. Drama, Turquia / Romênia / França / Espanha, 2021, 91 minutos.
Impressionante como, muitas vezes, um filme pode até ser pequeno, mas sem deixar por isso de ter instantes de grande potência. Particularmente há uma cena em Entre Dois Crepúsculos (Iki Safak Arasinda) - obra turca recém lançada e disponível na sempre ótima plataforma Mubi - que exemplifica essa situação. Nela, Kadir (Mucahit Kocak) participa de um jantar onde está conhecendo a família de sua noiva Esma (Burcu Gölgedar). O que deveria ser um momento de plena alegria - ainda que envolta pela ansiedade natural que costuma rondar esse tipo de situação -, se converte em um episódio absolutamente desconfortável, após o seu sogro o convida para tocar o saz, um tipo de instrumento musical típico da região. O problema não está na incapacidade de manejar o objeto e sim nos pensamentos de Kadir. Na sua mente. Com a cabeça longe ele consegue, apenas com o olhar e com o gestual sôfrego e constrangido, transmitir toda a angústia que invade a sua alma. A última coisa que ele desejaria ali, era ser meio que obrigado a tocar saz.
Mas, ok, o futuro sogro de Kadir não sabe do "pepino" que o sujeito está envolvido. Diretor de uma fábrica de produtos têxteis ao lado do irmão mais velho Halil (Bedir Bedir), o protagonista está tendo que lidar com um gravíssimo acidente de trabalho que ocorreu nas dependências da indústria, após uma pane em um limpador a vapor. Na tentativa de consertar o equipamento, o operário Murat (Mehmet Emin Kadihan) sofre severas queimaduras, tendo de ser levado às pressas ao hospital mais próximo. A ideia de analisar a responsabilidade dos empregadores com seus funcionários em casos do tipo não chega a ser exatamente uma novidade no cinema. Mas aqui a experiência proposta pelo diretor estreante Selman Nacar ganha tintas documentais, avançando ainda para os dilemas éticos e morais que emergem da situação. Tocar saz, passar a imagem de bom moço? Não, não rola. Não naquele momento.
Orientados pelo advogado Yasin (Erdem Senocak), os irmãos e mais o pai Ibrahim (Ünal Silver) tentam se antecipar a toda a tramitação judicial que poderá decorrer do episódio, propondo à esposa Serpil (Nezaket Erden) uma espécie de acordo financeiro que a compense. As informações no hospital são insuficientes. O ferido se recuperará? Voltará a trabalhar? Morrerá? Enquanto aguardam notícias, os familiares de Murat precisam lidar com a (aparente) falta de empatia, de sensibilidade daqueles que estão do outro lado do balcão. E que parecem interessados apenas em religar os equipamentos para que a produção - que já está ficando atrasada - seja retomada o quanto antes. Se morrer alguém no caminho? Fazer o quê, os patrões não são coveiros, né? E não é por acaso que a leitura do documento que busca acertar os detalhes do acordo é tão constrangedora. Especialmente quando os patrões dão a entender que o acidentado estaria cumprindo as suas funções alcoolizado. Ou será que estaria mesmo?
Bom, ainda que possua leis trabalhistas que respeitem o lado do funcionário, a situação na Turquia não é muito diferente da do Brasil. E no fim das contas a gente sabe qual o lado mais fragilizado em uma situação dessas. Para Halil, a maior punição parece vir de sua consciência. Em caso de tragédia maior do que aquela prevista ele poderá mudar de País. Fugir. Os equipamentos poderão ser religados sem problema algum. Ao redor do mundo os importadores pouco ou nada se preocuparão. Os clientes seguirão comprando. As tramas, os fios, se engendrarão, numa metáfora mais do que ajustada pra tudo aquilo. Mas o atoleiro moral, esse permanecerá. Reforçado pela fotografia melancólica, acinzentada. Pelos longos e sufocantes planos sequência, que amparam atuações naturalistas, orgânicas. E pelo saz que entoa uma bela melodia, mas que jamais abalará o abismo existente entre os dois extratos sociais que acompanhamos.
Nota: 8,0
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