segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Cinema - Não! Não Olhe! (Nope)

De: Jordan Peele. Com Daniel Kaluuya, Keke Palmer, Steven Yeun e Brandon Perea. Ficção Científica / Suspense / Drama, EUA / Japão / Canadá / 2022, 130 minutos.

"Você sabia que a primeira imagem registrada em celuloide da história nos Estados Unidos é de um homem negro montado a cavalo?"

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO CONTÉM SPOILERS]

Uma obra sobre a natureza exploratória da indústria do entretenimento? Uma alegoria sobre apagamento de vidas negras e outras questões raciais? Uma análise social sobre o voyeurismo em tempos tecnológicos? Ou apenas um filme clássico de invasão alienígena? Definir Não! Não Olhe! (Nope) não é tarefa fácil e, vamos combinar, está tudo bem - até mesmo porque eu duvido muito que alguém termine o novo projeto de Jordan Peele (Corra!) e pense "bah, acho que eu sei exatamente o que o diretor quis dizer". Aqui nada é definitivo mas, tudo é envolvente, sensorial. E bastam os primeiros dez minutos para que já saibamos haver mais camadas por baixo da superfície. E outras, e mais outras. Como já se tornou uma tradição em sua curta filmografia, Peele discute uma série de temas, mas sempre apostando no dito pelo não dito, naquilo que fica nas entrelinhas, nas bordas, nas frestas. A sutileza é o que nos pega, nos amarra, nos absorve.

E, mais do que tudo, mesmo sendo um projeto relativamente enigmático em suas discussões, o roteiro como um todo é simples - ainda que tudo seja pra lá de instigante. Nesse sentido, Peele faz com que a gente se movimente daqui pra lá na poltrona porque parece haver uma espécie de desconforto permanente, algo que ali adiante vá quebrar a lógica. Em uma das primeiras sequências, por exemplo, temos as imagens de arquivo de uma tragédia ocorrida durante as filmagens de uma sitcom fictícia chamada Gordy's Home. Nela, um chimpanzé que integrava o elenco surta e tem um ataque de fúria. Há um contraste entre a cenografia e os figurinos hipercoloridos que compõem o set de filmagem e que fazem um contraponto ao sangue (e aos corpos) que se espalham pelo cenário. Um tênis, exoticamente, permanece de pé - um tipo de evento meio aleatório. Quais os limites afinal do uso dos animais na indústria? É por aí que a narrativa nos levará? Talvez.

Corta para um rancho onde vivem os irmãos James e Jill Haywood (Daniel Kaluuya e Keke Palmer), que tentam tocar o trabalho como adestradores de cavalos após o trágico falecimento do pai em circunstâncias pouco claras (ele é atingido por um objeto em meio a uma chuva de quinquilharias do céu). Responsável pela Haywood Hollywood Horses, James fornece animais para figuração na indústria do cinema. Só que a falta de carisma do protagonista, aliada ao racismo estrutural subjacente, tornam uma tentativa de negócio meio frustrada - e basta ver o olhar de desprezo de uma certa Bonnie Clayton (Donna Mills), a dondoca que protagoniza a obra dentro da obra, para que já saibamos o que ela está pensando. Preconceito racial? É esse o caminho? Também. Incapaz de levar os negócios adiante, os irmãos passam a negociar cada um dos eqüinos a um tal de Jupe (Steven Yeun), um dono de circo das redondezas e que é o único sobrevivente do ataque do chimpanzé Gordy.

Só que em certa noite um dos cavalos foge e, ao tentar resgatá-lo, James se depara com o rancho de Jupe iluminado para uma apresentação, ele está posicionado em um topo de morro (a cena é um tanto hipnótica). Após, há o susto com o que parece ser um objeto voador não identificado. É isso mesmo? Há alienígenas no local? Por quê diabos aquela nuvem do fundo do cenário não se mexe? E por quê os cavalos desaparecem? É possível criticar alguns elementos do próprio universo do cinema e utilizar desses mesmos elementos em um filme? São muitas as perguntas e poucas respostas. No decorrer, Peele aposta na alegoria, na metáfora como elemento norteador (o que vai da citação bíblica à conclusão que beira o delírio e o fascínio midiático). Luzes que apagam e acendem sem explicação, pequenos ETs que aparecem nos estábulos, uma música exageradamente alta, um agrupamento de bonecos de posto que causam estranheza - e que geram mais um paradoxo de cores. Os limites entre a razão e a imprudência, entre a calmaria e a fúria, parecem sempre próximos de serem ultrapassados aqui. A gente vai ficar intrigado até o final. Fascinado em alguma medida. E é isso que o cinema de Peele faz conosco. Vai pelos cantos, nos envolve e nos derruba. E, no fim, resta o sorriro (e até as lágrimas) no rosto.

Nota: 9,0


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