quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Cine Baú - Week-End à Francesa (Weekend)

De: Jean-Luc Godard. Com Mirelle Darc e Jean Yanne. Comédia dramática, França / Itália, 1967, 105 minutos.

"Cinema é a fraude mais bonita do mundo." Jean-Luc Godard

Ah, a civilização. Esse conjunto de valores próprios que integram a vida política, cultural, econômica e religiosa de um determinado local e que possibilitam a convivência ordeira em sociedade. Poucas vezes essa falácia - a de que somos capazes de ser pacíficos, corteses, afáveis, amistosos - foi tão bem desmontada em um filme como no clássico Week-End à Francesa (Weekend), do recém-falecido Jean-Luc Godard. Caos no trânsito, gritaria, acidentes, traições, discussões, estupros, perversões sexuais. Tiro, bomba, sangue, morte. Ódio, preconceito, intolerância. A buzina interminável. O tempo todo. Tudo aquilo que forma a paisagem, inclusive atual, do nosso cotidiano, está lá. Por que para Godard não bastava criticar por criticar, já que o diretor utilizava a arte e suas possibilidades simbólicas, de quebra de lógica de sua própria linguagem, para um exame mais profundo das nossas mazelas. A viagem feita pelos protagonistas Corinne e Roland Durand (Mirelle Darc e Jean Yanne) é, ao cabo, apenas uma boa desculpa.

Em uma das tantas sequências inesquecíveis, o casal enfrenta um longo engarrafamento, que é filmado de forma bem coreografada em um longo plano de poucos cortes. A balbúrdia e a confusão são ampliadas pelo barulho que vem de todos os lados. Enquanto cruzam a estrada, se deparam com crianças que correm, idosos que jogam xadrez, caminhões de combustíveis, carros batidos, veículos que parecem conduzir animais ao circo, carroças. Discussões e mais discussões. Revólveres que são sacados, ameaças que são feitas. Ao final, vencidos os obstáculos, trata-se "apenas" de um grave acidente. Com vários mortos. Fazer o quê, né? Ninguém é coveiro e a vida continua. Mais adiante, a dupla se depara com uma nova confusão. Nela, uma ricaça discute com o motorista de um trator - provavelmente um agricultor da região. Ela argumenta de forma elitista, evidenciando a diferença de classes como uma forma de apontar onde está a ponta mais fraca (a que de depende do Governo, de associações, de cooperativas). 


No cerne do filme de Godard, assim como em muitos outros, está o apontamento desses contrastes. Especialmente o de que nas aparências de uma convivência ordeira, está um subsolo cheio de feridas, de fraturas estruturais, de paradoxos. E que não tardarão a emergir à superfície. Ao cabo Roland e Corinne são anti-herois irritantes, burgueses mesquinhos. Cada qual com seu amante que mantém em segredo - conspirando para matar o outro. E como assassinato pouco é bobagem, ainda tramam entre si para colocar em prática um plano que visa a dar cabo da vida do moribundo pai de Corinne. O que lhes garantirá uma polpuda herança. Eles estão agitados, claro. E não é por acaso. Quando se acidentam no meio do caminho, a preocupação da mulher é com a sua bolsa: um artigo de luxo perdido no incêndio. O restante da trajetória, num ambiente rural, bucólico e inóspito, terá de ser feito a pé. Onde se depararão com um sem fim de figuras excêntricas, bizarras, que parecem saídas de algum lugar da literatura fantástica, do teatro mágico. Ou, vá lá, de um sonho felliniano que se mistura com os delírios de Buñuel (todos eram contemporâneos, afinal).

E tomando-se por base Weekend À Francesa, talvez não seja por acaso que a obra de Godard permaneça tão atual, tão vívida, tão contemporânea. Refletindo esses nossos tempos - de extremismo de direita, de pandemia, de guerra, de vazio das relações e de incapacidade de compreender o outro - como nunca. Quando um vizinho saca o revólver para tentar atirar no outro por causa de uma batida de carro ainda no começo do filme, é simplesmente impossível não pensar nos malucos que preferem tirar a vida de alguém que nem conhecem em uma uma briga de trânsito, do que optar pela conciliação. A civilização falhou e o diretor francês era mestre em ir nas vísceras dessa análise (a divisão por classes de antigamente, apenas se converteria na divisão por classes atual). Hiperbólica. Surrealista. Histriônica. Picaresca. Metalinguística. Política. Filosófica. A experiência com o filme pode soar exagerada e pouco amistosa para alguns paladares. Talvez direta demais. Mas o encontro da selvageria da vida real, em colisão com a busca da compreensão do mundo - especialmente por meio das artes - segue incontestável em última análise. O legado de Godard é enorme. E Weekend é só um de seus tantos clássicos. 


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