quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Livro do Mês - As Intermitências da Morte (José Saramago)

E se a Morte paralisasse as suas atividades? Resolvesse, de um dia para o outro, descontinuar o seu trabalho. Uma espécie de greve. Sem aviso prévio. A gadanha pendurada em um canto. O corpo esquelético em repouso. Um fato absolutamente contrário as normas da vida, daqueles de causar uma perturbação enorme nos espíritos. Um fenômeno nunca antes visto nos quarenta volumes da história universal - no caso 24 horas sem que se tivesse sucedido um falecimento que fosse por doença, por queda mortal, por suicídio. Nem um acidentezinho de trânsito - uma daquelas trágicas irresponsabilidades que povoam as estradas. Como reagiríamos a essa inesperada suspensão? Como procederíamos diante da imortalidade, convertida agora no "novo normal"? Pois é justamente isso que José Saramago imagina no fabulesco As Intermitências da Morte, obra lançada em 2005 e que funciona como uma ampla divagação sobre finitude, sobre vida e, creiam, até sobre amor.

Quando lançou o livro, Saramago já estava com 83 anos. Então não poderia haver nada mais natural do que utilizar o seu estilo virtuoso e repleto de alegorias - e de frases e de parágrafos intermináveis entrecortados por vírgulas -, para uma reflexão meio existencialista sobre a morte. Aliás, a frase de abertura da obra - "E no dia seguinte ninguém morreu" - já está inscrita entre as grandes sentenças da ficção mundial. O paradoxo, portanto, de não mais alcançar o ocaso da existência e todos os problemas implicados pelo inusitado fato - os conflitos governamentais, os dilemas institucionais, o caos visto em hospitais, casas de repouso ou agências funerárias -, forma a matéria-prima que faz com que percebamos a importância desse capítulo da nossa história. A morte, afinal, também tem sentimentos. "E, magoada com o mundo, resolve mostrar aos humanos como eles estão sendo ingratos", revela a orelha da edição lançada pela Companhia das Letras.


Porque sim, esse é o inesperado efeito de algo que apenas nos damos conta da importância quando não mais a possuímos. Mas engana-se quem pensa que o estilo é sisudo - assim como é o do melancólico Ensaio Sobre a Cegueira (que havia sido o meu único contato anterior com a obra do português que ganhou o Nobel de Literatura em 1998). Por mais macabra que seja a temática, o caos estabelecido em hospitais repletos de moribundos agonizantes e de idosos em situação decrépita que não conseguem partir "desta para uma melhor", o que acompanhamos é um relato irreverente e irônico, que nos apresenta as influências da morte em uma série de situações cotidianas - e nesse sentido, me diverti muito com o transtorno ocorrido na Igreja que, sem morte, não pode trabalhar com o conceito de "ressurreição". "E sem ressurreição não há Igreja", constata um desesperado cardeal, nos dias seguintes à inesperada greve.

Não foram poucos os autores, que utilizaram a morte - algo tão cotidiano, tão prosaico -, como matéria-prima. Ela, definitivamente está entre nós - seja em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, ou Em Crônica de Uma Morte Anunciada, de Gabriel Garcia Marques, passando por A Morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstoi. Em As Intermitências da Morte, assim como ela desaparece, ela anuncia que vai reaparecer. Por meio de uma carta lida em rede nacional, em uma emissora de TV do País, em horário nobre. E é aí que se estabelece um novo caos. O que ocorre em sua volta? Quem deveria ter morrido nesse meio tempo, como fica? Morre? Permanece? A morte, pra não alarmar ninguém, resolve enviar uma carta a cada candidato à partida. Com um aviso prévio de uma semana para o adeus, para a escritura de testamentos, para as organizações burocráticas finais. O que gera uma nova corrida desesperada diante da impotência diante da finitude. Tudo ocorrendo de forma desenfreada. Vertiginosa. Com trucagens diversas - com direito até mesmo a "quebras de quarta parede". Talvez Saramago quisesse congelar a morte por um tempo, ao perceber que ela, enfim, se aproximava. Quem ganhou foram os leitores. É um livraço!

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