sexta-feira, 6 de março de 2020

Livro do Mês - Fahrenheit 451 (Ray Bradbury)

Faz pouco mais de um mês que circulou pelas redes sociais uma notícia que parecia saída de algum livro de ficção científica daqueles que envolvem governos totalitários que oprimem a população. E por mais que o governo Bolsonaro pareça TODO ELE uma distopia, a notícia de que a Secretaria de Educação do Estado de Rondônia pretendia banir mais de 40 livros de autores consagrados brasileiros, das escolas estaduais, deixou todo mundo de cabelos em pé. Isso significava que obras clássicas como Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Macunaíma, de Mário de Andrade, e Os Sertões, de Euclides da Cunha, deixariam de figurar nas bibliotecas, sob a desculpa de conter "conteúdos inadequados para as crianças e adolescentes". Pois sabe quem bania livros por considerá-los subversivos? O nazismo. E foi exatamente no pós-guerra, que Ray Bradbury concebeu aquele que talvez seja o seu mais famoso livro até hoje: o ótimo Fahrenheit 451.

Esse preâmbulo todo tem um motivo: assim como no governo de Rondônia - o coronel Marcos Rocha é do PSL, claro, antiga sigla do "mito" -, na obra de Bradbury, acompanhamos o trabalho de uma Brigada que é destacada para exterminar os livros. Considerados uma ameaça ao sistema vigente, os exemplares devem ser queimados pela manutenção da ordem, que "impedirá que o conhecimento se dissemine como uma praga". Sabe aquela história de precarização da educação, de ataque sistemático ao conhecimento e de apologia ao emburrecimento da população, que estamos assistindo no governo Bolsonaro? Pois é, Bradbury escreveu Fahrenheit 451 justamente como uma crítica aos sistemas totalitários e a repressão política, que se utilizam do medo e da paranoia como uma forma de controle. Sem livros, a ocupação do povo é assistir a televisão - que surge como uma espécie de reality show de família -, enquanto os dias passam duros, frios, nada poéticos.



Pois essa dureza parece transparecer, inclusive, no estilo de escrita de Bradbury, um pouco mais seca, ainda que com eventuais floreios. Guy Montag, o bombeiro que protagoniza o livro, vive uma vida de alienação até o dia em que conhece a sonhadora vizinha Clarisse - uma jovem de espírito libertário, que reflete sobre o mundo, questiona procedimentos, preenchendo, nem que seja momentaneamente, o vazio existencial e Montag. Pois quando a garota desaparece misteriosamente e o protagonista participa de um evento traumático, em que uma senhora é queimada pelos bombeiros JUNTO com os seus livros (por não encontrar sentido na vida sem eles), Montag resolve se rebelar. Faz amizade com um certo Faber, que pretende lhe ajudar e se aproxima novamente, e perigosamente, dos livros, encontrando na resistência do sistema em que ele mesmo está integrado, o completo desmantelamento de suas ideias revolucionárias. "Antigamente os bombeiros apagavam o fogo. Hoje são eles que o provocam", reflete, afinal.

Trata-se de uma obra pessimista, eventualmente complexa e extremamente realista - além de ser recheada por uma série de episódios que mexem com a nossa imaginação, nos deixando absolutamente tensos (e não é por acaso que o volume gerou um bom filme dirigido por François Truffaut). Além disso, possui uma série de personagens secundários relevantes, caso da mulher de Montag, Mildred, e do bombeiro chefe Beatty, todos com arcos interessantes, que fazem com que a obra trafegue com naturalidade entre o suspense, o drama e até o deboche. Aliás, Bradbury parecia ser um sujeito muito engraçado, franco, brincalhão. Nesse sentido, talvez a frase dita por Freud, em 1933, quando os nazistas queimaram livros em praça pública, e que é lembrada no prefácio de Manuel da Costa Pinto faça tanto sentido: "que progressos estamos fazendo. Na Idade Média, teriam queimado a mim; hoje em dia, eles se contentam em queimar meus livros". Talvez seja o que nos resta diante de notícias como esta de Rondônia e de tantos outros absurdos relacionados à ataques a cultura, do governo Bolsonaro: rir, questionar, ser iconoclasta. Os livros, afinal, também nos estimulam a isso.

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