É o Brasil polarizado na sua essência que nos é apresentado no espetacular Solução de Dois Estados, mais recente romance do gaúcho Michel Laub, que é também autor dos ótimos Diário da Queda e Tribunal da Quinta-Feira. Nas páginas do livro, o ódio que divide também as famílias é materializado na experiência antagônica que envolve os irmãos Alexandre e Raquel. Jamais estereotipados, ainda que ricamente caracterizados, os dois funcionam como uma espécie de case para uma certa Brenda Richter - documentarista alemã que centra a sua lente para os países do Terceiro Mundo, bem como para as suas mazelas, diferenças sociais, contrastes. As questões políticas e a beligerância por trás de cada manifestação de cunho ideológico também pontuam cada obra da diretora. Jamais a questão é tratada de forma aberta, mas o Brasil que "iniciou" em 2018 - aquele mesmo que odiou perdidamente o PT (e a esquerda) e alçou um genocida desqualificado ao poder -, aparece em cada página. Em cada linha. Nos detalhes de cada relato.
Sim, porque este é um livro de relatos. De recortes. De entrevistas abertas capturadas por Brenda, com Alexandre e Raquel se intercalando em capítulos, em pequenas narrativas que contam um recorte de tempo que inicia ainda no começo dos anos 90 - período do desastroso Plano Collor e do consequente impeachment daquele que dava nome a uma política financeira bizarra da época. Cada um com eu ponto de vista. Mesmo com certa estabilidade, foi nessa época que Alexandre e Raquel viram seu pai falir. Raquel, traumatizada pelo bullying que sofre desde a juventude - o que rendeu um sem fim de episódios de humilhação (ela sempre foi obesa e, aos 46 anos, pesa 130 quilos) - converte as suas frustrações em performances artísticas em que expõe o corpo, misturando ato político, sexualidade, pornografia gráfica e violência. Tudo obtido com bolsas de estudo em caríssimas faculdades de Artes européias, patrocinadas pela mãe agora viúva (e com dinheiro que talvez eles sequer tivessem).
No outro lado da história, Alexandre é o empreendedor que transforma o limão em uma limonada - pra usar um dos tantos jargões da área. Permanecendo no Brasil, apoia à sua maneira a deprimida mãe e inicia uma via crúcis no mercado de trabalho, onde salta de estagiário de uma academia de ginástica, para um dos sócios majoritários do negócio. O que obtém com muito suor, sangue e dificuldades - e com o apoio de um pastor evangélico que atua na periferia, organiza um esquema de pirâmide financeira e, aparentemente, pode ter algum vínculo com as milícias. Não é preciso ser nenhum adivinho para reconhecer, de um lado, o conservadorismo raiz - que mistura apelo religioso com superação de dificuldades, capaz de utilizar a urna eletrônica com a arma em punho, enquanto divaga sobre sonhos meritocráticos - e, de outro, a progressista - também conhecida como "mamadora de tetas do Estado", que, de quebra, ainda é financiada por um banco privado, enquanto apresenta performances artísticas de gosto duvidoso para a classe média das grandes metrópoles. Aliás, classe média que, assim, se sentirá momentaneamente contemplada por algum tipo de fiapo de consciência (que se diluirá no jantar a base de sushi daquele amigo progressista).
No centro da discussão estará Brenda, que inicia como uma ouvinte neutra que, aqui e ali, fará pequenas inferências. Ela, afinal de contas, também tem seus traumas: perdeu o marido vítima de violência urbana quando divulgava um filme justamente no Brasil. A mesma violência que alcançará Raquel não apenas na sua juventude, mas também durante um evento em que realiza uma performance num hotel, durante um congresso, ocasião em que um homem sobe no palco para agredi-la física e moralmente. O homem em questão, de nome Jessé, é um pedreiro com problemas de alcoolismo que perde a filha para o crime. É a bola de neve da falência do Estado brasileiro - e de sua incapacidade de encontrar soluções para as mais variadas questões - que pontua a narrativa, que é conduzida como experiência literária que gera desconforto mas entretém em igual medida. Na orelha do livro, publicado pela Companhia das Letras, resta a pergunta: "a ideia de conciliação - ou de perdão - é inimiga ou aliada da barbárie em que nos metemos?". A resposta não parece ser simples - e nem está no livro. Mas é o tipo de impasse que nos deixará com a obra na cabeça por semanas a fio.
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