terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Livro do Mês - O Tribunal da Quinta-Feira (Michel Laub)

Sim, o Picanha tá ficando "metido". Agora, em 2020, além de falarmos dos nossos filmes, discos, séries e, eventualmente, até peças de teatro preferidos, vamos indicar uma leitura por mês, entre aquelas que estamos fazendo. Em partes esta também será uma forma de nos disciplinarmos para a manutenção do contato com os livros - e para tentar ampliar a rede em torno dessa arte tão maravilhosa.
_____________________________________________________________________

Eu havia lido apenas um livro do gaúcho Michel Laub até tomar contato com este O Tribunal da Quinta-Feira. Havia sido o Diário de Uma Queda - e não sei se esta é a forma mais adequada de se elogiar um autor, mas a evolução entre uma obra e outra é gritante. Uma parece um folhetim - um bom folhetim, não vou mentir -, a outra parece livro de "gente grande", cascudo. E não apenas no virtuosismo da escrita - direta, livre, sem firulas, daquelas que em dois ou três capítulos já amarrou o leitor no sofá para não soltar mais -, mas também pelas temáticas abordadas: modernas e envolventes. O protagonista (e narrador) é um publicitário de 43 anos de nome José Victor. Ele está no quinto relacionamento (!) e tem um melhor amigo chamado Walter - uma amizade de 25 anos, que iniciou nas salas de aula de faculdade, permanecendo pela vida. Walter é hoje aquela pessoa com quem Victor troca confidências em mensagens íntimas, cheias de particularidades e idiossincrasias relativas à amizade dos dois.

Quem tem uma amizade realmente próxima, de mais de quinze ou vinte anos, sabe como funciona a GALINHAGEM quando o assunto são os diálogos que se desnovelam no foro íntimo de um whats app, por exemplo. Não há limites na hora de falar de relações humanas, de mulheres (ou de homens), dos outros amigos, do trabalho, dos colegas de trabalho. De chefes que estão importunando. Das metas. Das preferências, gostos, das tags preferidas no site pornô que carrega mais rápido. Pode o assunto ser prosaico como o almoço do fim de semana ou o jogo de futebol da quarta-feira ou mais relevante, seja ele uma paixão nova, o eventual desgaste de uma relação, aquilo que se gosta ou não na vida. Em tudo. Mas toda aquela conversa certamente virá banhada de uma linguagem toda própria, com gírias e apelidos, com deboche e alguma dose de ironia que, se retiradas de contexto, poderão gerar mau entendidos ou a eventual revelação de pessoas de ética moralmente duvidosa, com falhas, preconceitos, imperfeições.


No meu caso, se eu sou o Victor, o Henrique, um de meus três melhores amigos, e com quem eu mais seguidamente troco mensagens, é o Walter. Mas o que aconteceria se algumas dessas mensagens, tão particulares, tão subjetivas, tão identificáveis apenas com aquele universo todo particular de duas pessoas, viesse ao mundo no formato de postagens em fóruns ou redes sociais? No livro, uma das ex-mulheres de Victor, a arquiteta Teca, descobre uma senha de e-mail perdida quase uma década atrás, que revelará o conteúdo arrebatador da troca de mensagens entre o agora ex-marido e o seu amigo de 25 anos. Alguns pares de mensagens, uma notícia assombrosa que poderá modificar a vida de todos para sempre: da própria Teca, de Walter, de Victor. E até da atual namorada do protagonista, a jovem Dani, redatora-júnior de apenas 20 anos, que deu há cerca de 10 meses alguma cor a existência quase vazia do publicitário de meia idade.

Como o tribunal da internet reagirá a todas essas mensagens que começam em amigos de amigos e vão parar em grandes fóruns de discussão naquele que pode ser considerado o maior escândalo da cena publicitária moderna da Berrini  - e dos Faria Limers em geral, de São Paulo? Como os paladinos da moral, os fiscais de coerência atacarão com toda a sua fúria explosiva esse macho hétero, cis, privilegiado, que comete esse absurdo de conversar na linguagem da "putaria" - não da putaria em si, mas da zombaria -, com seu melhor amigo, prejudicando todos a sua volta? Como a busca por novos inimigos imaginários transformará este episódio em uma cruzada épica de bem contra o mal? Diante de um tribunal que se forja no texto e que lhe julga, o protagonista não deixa de reconhecer as suas falhas: é um ricaço que de vez em quando bebe e se droga e que talvez tenha abusado do poder, que talvez tenha mentido, que talvez tenha comprometido (ou não) o futuro de alguém. Vai saber. E que num instante talvez se torne a execrável figura de um machista, de um hedonista. Que talvez se enquadre na mesma vala comum dos pederastas, dos racistas, dos homofóbicos. Dos bolsonaristas. Com capítulos curtos e apenas 184 páginas, o livro brinca ao citar as referências, os lugares, os programas de TV e as personalidades, conduzindo a trama para um desfecho em que bem ou mal, certo ou errado, público e privado, lealdade e hipocrisia são postos à prova a todo instante, nos questionando os efeitos desse tribunal que, cedo ou tarde, pode estar sobre nós.

Nenhum comentário:

Postar um comentário