sexta-feira, 8 de julho de 2022

Livro do Mês - A Velocidade da Luz (Javier Cercas)

O passado que reverbera no presente. As escolhas de vida nem sempre acertadas. Objetivos, sonhos, decisões e frustrações. Arrependimentos espalhados, trajetórias dentro daquilo que é possível. Tudo aquilo que, afinal, parece dotar a nossa realidade de sentido - ou mesmo de beleza, mesmo quando na dor -, é possível encontrar nesse maravilhoso A Velocidade da Luz, o meu primeiro contato com a obra do espanhol Javier Cercas. Sem medo de errar a obra da editora Biblioteca Azul é não apenas uma das melhores leituras do ano, mas como já vai diretamente praquele seleto grupo dos "da vida". Porque, ao cabo, é incrível como o autor pega uma coleção de temas aparentemente simples, que envolvem desde um autor recém aclamado em busca de uma nova história pra contar, passando pelos traumas de guerra e sobre como eles alterarão para sempre o futuro dos envolvidos, até chegar aos dramas domésticos nunca solucionados - tudo com uma fluidez desconcertante.

O livro é narrado por um protagonista que jamais diz o seu nome e que, quase como num desses acasos da vida, sai de Barcelona no começo dos anos 80, indo parar em Urbana - uma daquelas cidadezinhas tipicamente provincianas dos Estados Unidos. Desempregado, pobre, vivendo de bicos e com uma formação meio inútil ligada à área de Publicidade, o narrador recebe a dica de um professor universitário chamado Marcelo Cuartero: a Universidade de Illinois estava com vagas abertas para professor de espanhol. Como aspirante a escritor o sujeito é movido pelo desafio: e na Terra do Tio Sam conhecerá um certo Rodney Falk, seu companheiro de sala - um corpulento veterano da Guerra do Vietnã. Sujeito meio desengonçado, atarracado, que usa um tapa olho, Falk é uma figura taciturna, excêntrica, de poucos amigos. Daqueles que preferem o isolamento do que o convívio social. E que, claramente, guardam uma série de segredos por baixo da "casca".



E será justamente da convivência com Rodney que emergirá uma curiosa amizade, regada a muitas conversas sobre literatura - o ex combatente é fascinado por Ernest Hemingway -, que avançarão para pequenas trocas de confidências e até mesmo para avançados debates sobre o livro que o narrador, aos poucos, começa a dar forma. Tudo corre bem até o final das férias, quando Falk simplesmente desaparece do mapa. Sem deixar muitos vestígios. Com poucas informações sobre o novo amigo - na Faculdade o desinteresse por ele é meio generalizado - o protagonista descobrirá a residência do pai do desaparecido. Que o convidará para contar a sua história, que é recheada por ocorrências que marcariam a vida do veterano de guerra para sempre. A guerra afinal, pode até ficar para trás. Mas a memória dela, de seus horrores e de seu absurdo permanece.

Cercas costura essa narrativa entregando uma prosa riquíssima, poética e que vai recompensando o leitor com pequenas surpresas que, aqui e ali, formarão uma verdadeira colcha de retalhos a respeito da ruína do ideal de força que evoca dos conflitos bélicos, ao passo em que avança para a completa deterioração do sonho americano. "Existem duas tragédias na vida: uma é não conseguir o que se quer. A outra é conseguir". A frase de Oscar Wilde parece ser fundamental para todos os envolvidos ali, que veem seus desejos esfacelados - mesmo diante daquilo que poderia ser considerada uma vitória. O narrador sonha em ser um escritor de sucesso, Rodney deseja sepultar as lembranças trágicas do conflito, o pai de Rodney gostaria de não ter forçado a barra com seus dois filhos - especialmente com Bob, o irmão mais velho de Rodney. Talvez se o protagonista tivesse agido diferente com a sua esposa Paula e com seu filho Gabriel. De repente tudo ocorreria de forma diferente, por outros percursos, outros caminhos. Ou talvez assim não houvesse essa verdadeira obra-prima moderna, que fala de muitas coisas ao mesmo tempo, sem deixar de ser, ainda, um grande elogio ao poder da escrita. Inclusive como forma de exorcizar demônios. Vale a leitura. O quanto antes.

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