terça-feira, 2 de julho de 2019

Tesouros Cinefilos - Tangerine (Tangerine)

De: Sean Baker. Com Kitana Rodriguez, Mya Taylor, James Ransone e Karren Karagulian. Drama / Comédia, EUA, 2015, 85 minutos.

Existe uma cena do clássico cult Tangerine (Tangerine) que nos dá a medida exata de como as portas do mercado de trabalho estão fechadas para as trans - e para o público LGBTQI em geral. Mas, especialmente, para as trans. Uma das protagonistas, Alexandra (Mya Taylor), irá se apresentar em um clube noturno de West Hollywood, em Los Angeles, cidade que é palco do filme. Lá pelas tantas, depois da belíssima apresentação de uma canção romântica, descobrimos que Alexandra PAGOU para subir ao palco. Para mostrar seu trabalho. Ou seja, na busca de uma oportunidade que não seja o inevitável universo da prostituição - e da esteira de violência, drogas e agressões de todos os tipos que invariavelmente o acompanha -, ela prefere entregar o seu suado dinheiro para o dono da boate. Uma espécie de investimento que mantém viva a esperança de que as pessoas possam olhá-la como uma artista. E não como alguém que queira necessariamente fazer sexo, ou "vender o corpo", o tempo todo.

Sim, porque esse é o olhar que, infelizmente, boa parte da sociedade - e todos estamos incluídos nessa - tem a respeito do universo das trans. São apenas "objetos" que servirão para algum tipo de satisfação pessoal. Sem sentimentos, sem medos, sem objetivos, sem sonhos. É como se, por serem inevitavelmente prostitutas, elas se tornassem imediatamente figuras dissociadas de outros aspectos de sua humanidade. Corpos que estarão ali para satisfazer senhores, inclusive os "bem casados" das famílias de bem. E, no fim das contas, é esse tipo de crueza, de aspereza que acompanhamos na rotina de Alexandra e da (quase) inseparável companheira Sin-Dee (Kitana Rodriguez). Na jornada em busca de um namorado traidor - o trambiqueiro Chester (James Ransone) -, a dupla atravessará a cidade, transformando a película em um conto de Natal as avessas. O conto de Natal dos excluídos, dos vulneráveis, das minorias, que muitas vezes são ignoradas pelos demais.


Aliás, na simplicidade da narrativa - a busca pelo já mencionado namorado traidor (quer algo mais "mundano"?) -, surge o modus operandi completamente oposto. Filmado com três celulares iPhone e apenas R$ 320 mil de orçamento, a obra tem um caráter documental palpável, meio de "guerrilha", como se cada cena gravada nos aproximasse ainda mais daqueles que assistimos. A gritaria das brigas, as confusões involuntárias, os momentos de serenidade e de reflexão, a trilha sonora que equilibra momentos de calmaria, com outros muito mais urgentes, dinâmicos, formam o combo de uma película que ganha pontos por dar visibilidade a quem não aparece. Por transformar em gente como a gente (a seu modo, claro), figuras tão carismáticas como Sin-Dee e Alexandra. Suas lutas, a gente sabe, são maiores do que a busca por um grande amor. Refere-se a busca por um grande amor em um mundo de preconceito, de ódio, de intolerância.

E esse preconceito pode até demorar a aparecer, mas aparece, seja no grupo de playboys (votantes do Bolsonaro) que joga um saco de mijo na cara de Sin-Dee ao abordá-la, seja na beligerante sequência em que a sogra de Razmik (Karren Karagulian), um taxista casado, pai de família em uma tradicional família da Armênia, vai confrontá-lo. Aliás, este é mais um aspecto abordado "de passagem" pelo filme: o da hipocrisia de uma sociedade incapaz de lidar com a quebra de tradições conservadoras, relegando os seus sujeitos a vidinhas ordinárias em que não conseguem ser o que efetivamente desejariam ser. Tangerine, com sua fotografia alaranjada, sua ambientação cáustica, seus contornos imprevisíveis, pode até ser um filme pequeno na metragem e na concepção. Mas é grande no que se propõe, abrindo portas para que Sean Baker (seu diretor), brilhasse ainda mais em Projeto Flórida, um de seus elogiados trabalhos seguintes.


Um comentário:

  1. Filme muito bom. Valeu assistir, além da agradável e qualificada companhia.

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