terça-feira, 9 de novembro de 2021

Tesouros Cinéfilos - Titane (Titane)

De: Julia Ducournau. Com Agathe Rousselle e Vincent Lindon. Drama / Ficção científica, Bélgica / França, 2021, 108 minutos.

Tema complexo e que costuma despertar um sem fim de teses, de artigos e de trabalhos acadêmicos, o pós-humanismo dá conta de um novo modelo de subjetividade, capaz de integrar o sujeito às tecnologias disponíveis. Como nos filmes de ficção científica, esse imaginário costuma transcender o humano para além dos limites físicos (e carnais), fazendo com que este transponha as barreira entre o natural e o artificial, entre o orgânico e o maquínico. Alterações genéticas, clonagem, mutações e outras técnicas sofisticadas transformam o homem, de acordo com certas correntes de estudos, em verdadeiras máquinas híbridas com eventuais capacidades ampliadas. Sabe aquele ciborgue meio homem meio robô que vemos nos filmes? Digamos que o pós-humanismo divague sobre estas ideias - possibilitando um novo tipo de existência a esta forma tecnologizada. Mas quais os limites éticos de tudo isso?

Sim, é complicado e eu adoraria ter a capacidade (e a disponibilidade de tempo) pra escrever um trabalho científico sobre Titane (Titane), estabelecendo um paralelo entre os conceitos de pós-humanidade e aquilo que vemos na obra. E, antes de mais nada, eu preciso dizer que filmes que ousam quebrar a lógica, que saiam do lugar-comum ou que representem algum tipo de desafio para o espectador, me causam verdadeira fascinação. E é exatamente este o caso da obra da diretora Julia Ducournau - que, não por acaso, faturou a Palma de Ouro no Festival de Cannes desse ano (e deverá ser uma das indicadas ao Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira). É uma obra que gera desconforto, que nos deixa inquietos. E que possui uma ampla possibilidade de interpretações. Como se fosse um Leos Caraux ainda mais porra louca, Ducournau transforma seu trabalho em uma experiência sensorial. Complexa. Curiosa. Excêntrica. Sexy. Mas suja. Vigorosa. E robusta. Ninguém sairá sem sentir uma ponta de incômodo da sessão de Titane. E essa também é uma das belezas da arte. Provocar. Questionar.

E eu confesso a vocês que li pouquíssimo sobre a obra antes de assisti-la. Possuía quase nada de informações. E isto serviu para que eu fosse ainda mais surpreendido. Pra que ficasse paralisado. Os primeiros trinta minutos já são de tirar o fôlego, momento em que somos apresentados à protagonista Adrien (Agathe Rousselle) que, na juventude, sofreu um doloroso acidente de carro que lhe deixou com um "efeito colateral" irreversível: manter uma placa de titânio no crânio. Como adulta, ela ganha a vida como dançarina em uma espécie exótica de showroom de carros - local frequentado por marmanjos de quarenta e poucos anos, que descarregam suas prováveis frustrações sexuais (ou suas taras mesmo), assistindo apresentações generalistas de mulheres seminuas, com decotes generosos, em meio a carros tunados (uma espécie de simbiose que, vá lá, talvez exagerando nas interpretações, dê conta do componente pós-humano, que também parece fazer parte deste tipo inusitado de relação, uma vez que "transar com o carro" talvez já não soe assim tão metafórico pra alguns).

Sem aliviar na violência gráfica, bastante estilizada - a paleta de cores é quente, vibrante -, Adrien é uma figura em fuga, que não hesita em levar a cabo a autodefesa como modus operandi (em um universo de machistas abusadores é algo que faz sentido, e que talvez possa ter a ver também com o caráter "biônico" de sua biologia). Aqui, vale lembrar vocês que me leem: tudo no campo das possibilidades de interpretação, já que nada é claro. Não há evidências de nada. As pontas são abertas. Assim como as metáforas sobre maternidade, aceitação, conceito de família, heteronormatividade, pós-modernidade, tecnologia e transcendência. E até (pasmem), a força do amor. Todos esses assuntos ampliados após a descoberta de uma gravidez inesperada e da aproximação com um perturbado pai de família (papel do ótimo Vincent Lindon) devastado pela precoce morte do filho (durante um incêndio). É uma obra enigmática, de difícil digestão e, talvez por tudo isso, altamente poderosa.

As noções sobre pós-humanismo foram extraídas do artigo: https://bit.ly/3D1TcJI

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