quarta-feira, 6 de abril de 2022

Novidades em Streaming - Drive My Car (Doraibu Mai Ka)

De: Ryusuke Hamaguchi. Com Hidetoshi Nishijima, Reika Kirishima, Masaki Okada e Toko Miura. Drama, Japão, 2021, 179 minutos.

Se Drive My Car (Doraibu Mai Ka) fosse uma torta daquelas bem vistosas que vemos nos balcões de padarias, certamente poderíamos compara-la com aquele doce coberto de merengue. E por mais que a gente não saiba exatamente o quê vai encontrar no recheio, vai saboreando com gosto cada garfada. Com calma, sem pressa. Sentindo a textura, tentando desvendar os ingredientes ou quais os sabores que aquela mistura evoca. Nas aparências, a obra do diretor Ryusuke Hamaguchi - vencedora do Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira nesse ano e que está disponível na plataforma Mubi -, é "apenas" mais uma grande reflexão existencialista que é salpicada por temas que envolvem arrependimentos, memórias, luto, persistência, destino e envelhecimento. Já em seu cerne, em suas vísceras, trata-se de um amplo tratado sobre a complexidade humana, sobre dores, anseios, desejos e frustrações. É, ao cabo, uma experiência cheia de nuances, de detalhes e de encaixes que mal parecem caber nas suas elásticas três horas de duração.

Como fio condutor temos a história de Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) um ator e diretor de teatro que, após uma bem sucedida temporada encenando o clássico de Beckett Esperando Godot, se prepara para as audições de uma adaptação de Tio Vânia, de Anton Tchekov (e aqui, na arrancada, só nos aspectos metalinguísticos dessas duas clássicas obras, já temos um sem fim de possibilidades intertextuais relacionadas à espera, paciência e desejo pelo desconhecido, banhadas em angústias, dúvidas e almas devastadas). Não por acaso, as longas e persistentes viagens de Yusufe à bordo de seu Saab 900, enquanto recria as falas da peça russa funcionam como uma espécie não apenas de expiação, mas também de manter a falecida esposa Oto (Reika Kirishima), como uma presença viva, palpável, diante da total impossibilidade de avançar para além do sentimento de culpa diante de decisões que podem ter contribuído para a morte da própria mulher.

Sim, Oto morre ainda no primeiro terço, quando os créditos iniciais ainda nem surgiram na tela, em decorrência de um aneurisma cerebral. Yusuke havia descoberto dias antes uma traição envolvendo um estagiário de Oto, que atuava em um dos programas de TV de grande sucesso roteirizado por ela. Ao optar por esconder o segredo que estava em seu conhecimento, o protagonista decide não confrontar esse passado que, invariavelmente, dialoga com o futuro de ambos. E ao retardar até o limite a possibilidade de diálogo, Yusuke enterra não apenas a esposa, mas também uma série de dúvidas e de questionamentos que, agora, serão praticamente impossíveis de serem acessados. Ou não. Já que quando o jovem Koji (Masaki Okada) ressurge na vida de Yusuke pleiteando uma vaga no elenco de Tio Vânia, esta poderá ser uma oportunidade de superar o luto e tentar entender o que pode ter acontecido dois anos antes.

Em paralelo a tudo isso, Yusuku precisa lidar ainda com a sua nova motorista - no caso a jovem Misaki (Toko Miura) - de quem, aos poucos, se aproximará. Dali, do inesperado, em meio as idas e vindas de carro entre o hotel e o local de trabalho, brotarão confissões a respeito de dores, de segredos e de uma série de outros sentimentos mútuos, que serão explorados sem pressa, de forma bastante sutil, estabelecendo a intimidade aos poucos, de maneira tópica. Aliás, assim como é a vida real. Assim como as mazelas não são arremessadas instantaneamente na nossa cara, as pequenas reconstruções de cacos envolvendo todos ali também não são - e é por isso que instantes comoventes como o do jantar mexem tanto conosco. São pequenas frações, detalhes minúsculos, que funcionam como uma grande colagem, montada em formato de quebra-cabeça. E é desse conjunto de sentimentos reprimidos, de sombras do passado que, aos poucos, vai se erguendo a força necessária para seguir adiante.

A vida, afinal, não é fácil. Ela é complexa, cheia de dores, de perdas, de conquistas, de acontecimentos aleatórios, inesperados, felizes e tristes. Cabe a nós todos termos a capacidade de elaborar em meio a tudo isso para uma convivência minimamente aceitável em sociedade. Segredos? Todos temos. Questões que nos invadem, nos incomodam, nos fazem sofrer. Mas como fazemos para prosseguir? Nas entrelinhas essas perguntas parecem martelar o tempo todo em Drive My Car e talvez seja por isso que sua metragem estendida pareça ainda mais longa do que o normal: é doloroso, mas magnífico, difícil mas libertador. Ao cabo trata-se de um filme monumental, gigante, que não alivia. Um road movie torto, sem muito espaço para exageros estilísticos. Que fica martelando dias depois. Direto, seco, mas saboroso. Assim como é aquele pedaço de torta que se revela por debaixo do merengue. Os prêmios não são por acaso. É um dos filmes do ano.

Nota: 9,5

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