segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Cinemúsica - Filadélfia (Philadelphia)

De: Jonathan Demme. Com Tom Hanks, Denzel Washington, Antonio Banderas, Mary Steenburgen e Jason Robards. Drama, EUA, 1993, 126 minutos.

"I was bruised and battered and I couldn't tell what I felt / I was unrecognizable to myself" / I saw my reflection in a window I didn't know my own face" (Streets of Philadelphia - Bruce Springsteen)

Vamos combinar que basta ouvir os primeiros acordes da melodia de Streets of Philadelphia, de Bruce Springsteen, para que a nossa memória seja invadida por imagens de Filadélfia (Philadelphia), filme estrelado por Tom Hanks e Denzel Washington. Assim como já aconteceu em outras ocasiões - seja com Mrs. Robinson, cantada pela dupla Simon & Garfunkel em A Primeira Noite de Um Homem (1967) ou Everybody's Talkin' interpretada por Harry Nilsson em Perdidos na Noite (1969) -, o fato é que aqui canção e filme se misturam, sendo quase impossível dissociar uma da outra. As ruas da Philadelphia estão lá enquanto a nossa mente vaga pelas suas esquinas, ruas, bairros, cheias de pessoas com suas vidas, rotinas e... preconceitos. Na obra de Jonathan Demme, que recém saía da consagração máxima por O Silêncio dos Inocentes (1991) - onde passou o rodo no Oscar -, o tema era o vírus da AIDS e as formas de lidar com a doença que, se já não era assim uma novidade no mundo, ainda era fruto de muita discriminação.

Uma revisão na obra nos faz perceber que algumas questões talvez não tenham envelhecido tão bem - especialmente no que diz respeito ao esforço do diretor para tornar a história mais palatável para o público médio (estávamos no começo dos anos 90, afinal). O amor entre Andrew Beckett (Hanks) e seu namorado Miguel (Antonio Banderas), por exemplo, é mostrado de forma bastante discreta, sem excessos. Aliás, não há sequer um beijo mais caloroso entre ambos e, certamente, isso teve a ver com a forma de (tentar) gerar total empatia pelo advogado encarnado de forma bastante apaixonada por Hanks. Gay assumido, ele não enfrenta problemas com a amorosa família. Mas no escritório onde atua, ele é demitido no que parece ser uma manobra orquestrada pelos sócios do local, a partir do momento em que percebem que ele é portador do vírus HIV - o que envolve a sabotagem de importantes documentos de um dos principais clientes da empresa. Desligado por suposta incompetência? Ou preconceito em estado bruto?

Aos trancos e barrancos ele contrata o competente advogado Joe Miller (Denzel Washington) para defendê-lo no caso. Só que o problema é que Miller é tão preconceituoso quanto os demais - e é aqui que está um daqueles clássicos arcos narrativos que envolve relacionamentos que iniciam turbulentos mas que, ao cabo, se convertem em uma grande amizade (e não dá pra negar que segue sendo absolutamente emocionante conferir dois atores do calibre de Hanks e Washington em tela, contracenando juntos). Abordado por Demme com delicadeza e arestas bem aparadas, o tema central se torna objeto de reflexão a respeito do absurdo da intolerância. Explicar para o público que a AIDS não era transmitida com apertos de mão, abraços ou beijos era necessário em uma época de pouca informação. E isso o filme faz de forma comovente, ao abraçar Andy de forma carinhosa - com Hanks "retribuindo" com uma de suas mais impressionantes interpretações da carreira (que lhe daria, com justiça, o seu primeiro Oscar como Ator).

A propósito do Oscar, Streets of Philadelphia, encomendada por Demme a Springsteen, também venceria a premiação máxima do cinema na categoria Canção Original. A canção fez tanto sucesso que se tornaria a mais famosa do compositor americano na Inglaterra. Para o clima ao mesmo tempo melancólico e afetuoso do filme, ela cai como uma luva, o que é complementado pelos versos doloridos e levemente enigmáticos - Eu estava machucado e surrado e eu não poderia dizer o que sentia / Eu estava irreconhecível para mim mesmo / Eu vi meu reflexo numa janela, não conhecia meu próprio rosto. No livro Almanaque da Música Pop no Cinema, do jornalista Rodrigo Rodrigues (que infelizmente faleceu de Covid), ele lembra que a música foi incluída no álbum All Time Greatest Songs, o que dá uma dimensão da sua importância. No auge do CD, o disco incluiria ainda outras gemas pop, como Philadelphia de Neil Young, Lovetown, de Peter Gabriel e uma versão de Have You Ever Seen the Rain?, do Creedence Clearwater Revival, interpretada pelos Spin Doctors. Mas é Streets of Philadelphia que se converteria num verdadeiro símbolo de combate ao preconceito contra pessoas contaminadas pela AIDS. Hoje esse tema parece até superado. Parece, vale lembrar. Mas em 1993, não dá pra negar, foi uma ousadia e tanto.


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