quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Cine Baú - Inverno de Sangue em Veneza (Don't Look Now)

De: Nicolas Roeg. Com Julie Christie, Donald Sutherland e Clelia Matania. Suspense / Drama, Itália, Reino Unido, 1973, 110 minutos.

Em uma das tantas sequências marcantes do clássico thriller psicológico Inverno de Sangue em Veneza (Don't Look Now), o enlutado casal Laura e John Baxter (Julie Christie e Donald Sutherland) se perde em meio a vielas escuras e túneis de aspecto sombrio da famosa cidade italiana. Próximo a margem de águas poluídas, turvas, um mar de ratos de aglomera, enquanto a dupla se empenha em encontrar uma saída praquele cenário labiríntico. Um vulto surge ao fundo - parece uma criança sorridente, vestindo uma cintilante capa vermelha. Igualzinha àquela que a pequena Christine (Sharon Williams) usava quando, tragicamente, morreu afogada - uma sequência assombrosa vista ainda no comecinho do filme de Nicolas Roeg (de A Longa Caminhada, 1971). Os pais de Christine, Laura e John, estão claramente desnorteados. E tentam recomeçar em Veneza - ainda que jamais encontrem no local o componente tipicamente turístico, que costuma marcar a capital da região de Vêneto.

E talvez esse seja um dos muitos pontos positivos do filme que, nesse ano, completará 50 anos de seu lançamento. Aqui não há muito espaço para a beleza ou para qualquer tipo de desafogo. John está em Veneza porque trabalha como restaurador de obras arquitetônicas - e um conjunto de obras feitas com a técnica de mosaico, em uma Igreja, tem sido o seu principal projeto. Em uma das cenas ele sobe por um andaime para tentar encaixar - ou mesmo comparar - as cores de uma peça que pretende usar em um amplo painel. A queda de um objeto quase termina em mais uma morte. Um acidente acontece. Muitos cacos quebram, estruturas de rompem. Seria um sinal? Assim como tantos outros? Desde que estão em Veneza, Laura e John passam a ter encontros curiosos, com pessoas excêntricas. Há olhares sobre eles. Visões perturbadoras surgem aqui e ali - sendo reforçadas pelo edição caleidoscópica e surrealista, que nos leva ao limite da tensão, ainda que não haja exatamente muita coisa acontecendo. 

 


Ao cabo, nesse caso, vale mais a simbologia, o dito pelo não dito. E mesmo a dúvida que pode ser proveniente da clara fragilidade psicológica que envolve a dupla de protagonistas. As desconfianças crescem quando eles conhecem duas irmãs idosas - uma delas é cega, mas garante ter poderes mediúnicos. Mais do que isso, ela afirma ter visto a filha de Laura feliz, junto a eles, no restaurante em que todos estão - a conversa no banheiro vai do susto à euforia inesperada. Haverá verdade nas palavras da mulher? E por quê John tem a impressão de também estar vendo a menina por entre as ruas estreitas de Veneza? E a sensação de desconforto só piora quando tem início na cidade uma série de assassinatos sem muita explicação. Laura teme que John possa ser uma das próximas vítimas. Que sensação é essa de que algo muito ruim possa estar pra acontecer, sem que haja necessariamente uma explicação?

Tecnicamente impecável a obra utiliza não apenas a montagem mas a fotografia acinzentada, que parece tornar a atmosfera ainda mais densa, para converter a obra em uma experiência sufocante mesmo quando se está em espaço aberto. O mesmo valendo para o uso das cores - observem como o vermelho parece surgir de forma persistente chamando a atenção para o perigo - e de rimas visuais que envolvem especialmente o sangue e a água (como no começo do filme, em que a chuva persistente dará lugar a um afogamento, ou mesmo um o instante em que um ferimento fará o sangue escorrer sobre um quadro, cobrindo justamente a imagem de Christine). Trata-se de uma obra de sutilezas e de detalhes, de informações no entorno e que até o desfecho nos deixarão em suspense - resultado de um roteiro soberbamente construído por Allan Scott e Chris Bryan a partir de conto da escritora Daphne Du Maurier. A esnobada no Oscar pode até hoje ser meio difícil de explicar. O que não diminui jamais o impacto do filme, que ainda possui um daqueles finais de explodir a cabeça.


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