Existe uma frase atribuída ao escritor George Bernard Shaw que bem poderia definir aquilo que assistimos no ótimo Marguerite (Marguerite), esse verdadeiro achado do cinema francês que está em cartaz pelas salas do País: "os espelhos são usados para ver o rosto, a arte para ver a alma". Baseado em fatos reais, o filme do diretor Xavier Giannoli conta a história da baronesa Marguerite Dumont (Catherine Frot), que costuma organizar saraus e outros eventos artísticos privados, em sua mansão, com objetivo de levantar fundos para crianças órfãs ou outras entidades em vulnerabilidade social. Por acreditar ter uma boa voz, a ricaça eventualmente "presenteia" o público que lhe prestigia com exibições de música clássica. O problema é que ela canta mal. Aliás, mal não. MUITO MAL. E, dada a sua generosidade e inegável interesse pessoal, claro, ninguém parece estar muito disposto a dizer a ela a verdade sobre o seu "talento" (ou falta de) musical.
A situação piora quando o jornalista pé-rapado Lucien (o ótimo Sylvain Dieuaide) resolve fazer o contrário e publicar, no jornal em que trabalha, uma resenha elogiosa à uma das apresentações de Marguerite. Reanimada, após uma noite de dúvidas acerca de suas performances, a baronesa decide levar a "carreira" adiante, programando uma apresentação em público para o futuro. Diga-se de passagem, o contato com Lucien, que lhe apresentará o submundo da produção cultural, com cantores, atores e escritores a margem da sociedade, além de outras personas burlescas da Paris dos anos 20, representará uma reviravolta para a baronesa. Algo como uma espécie de A Princesa e o Plebeu artístico, em que uma mulher rica conhecerá a efervescência e o turbilhão cultural, político e ideológico vivido pela França naquela época - e que culminará em uma desastrosa apresentação de Marguerite em um cabaré decadente do subúrbio.
Nesse sentido, a obra se torna inspiradora inicialmente por "pincelar" o momento político vivido pelo País, no período, mas também por fugir daquilo que seria o arco dramático mais óbvio - a representação do elemento cômico nas insistentes tentativas da baronesa em se tornar uma cantora de verdade. Circunstância que amplia a relevância do debate, costurando a trama com ambiguidades e elipses que nos fazem, permanentemente, questionar sobre aquilo que pudesse ser considerado "arte de verdade". Inegavelmente Marguerite, de acordo com as convenções - especialmente as burguesas, do início do século passado - é uma péssima cantora. Mas, num contraponto, ela não é um espírito que busca se transformar (e se elevar) por meio da arte? Ignorando inclusive o marido "mala" que insiste que ela não prossiga com as suas tentativas frustradas? Assim, na persistência de Marguerite não encontramos apenas libertação e empoderamento, mas também alma, esperança, e até mesmo alguma visceralidade e dedicação a um propósito. (alguém aí lembrou do punk rock?)
É evidente que o filme não deixa de lado o viés cômico - e as cenas com o improvável professor Atos Pezzini (vivido pelo ator Michel Fau) estão, desde já, entre as mais engraçadas do ano - e é com gosto que admito ter CHORADO DE RIR na primeira cena em que Marguerite apresenta seus dotes a ele. Ainda assim, como numa espécie de contraponto, tudo é tratado de uma forma solene e elegante e, mesmo as curvas fora do tom, o desafinamento e a dificuldade com as notas mais agudas da baronesa, são tratadas com respeito e até mesmo com um tom suntuoso pela produção - algo ampliado pela seriedade com que ela encara as suas apresentações, com direito a álbum de fotos surrealista e figurinos luxuosíssimos. (e, mesmo assim, é quase impossível não lembrar da personagem de Gloria Swanson no clássico hollywoodiano Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950), dado o caráter expressionista das manifestações ou mesmo o espírito esquizofrênico da composição da protagonista, especialmente a partir do terço final)
Com personagens riquíssimos e ambíguos - até o fim do filme não temos a exata certeza sobre as reais intenções de Lucien, ainda que reconheçamos seu espírito anárquico e disposto a destruir convenções ou mesmo desmascarar a hipocrisia reinante na burguesia -, a obra ainda capricha no desenho de produção, com uma riqueza cênica digna de nota. A trilha sonora invariavelmente recheada de grande mestres da música clássica - Mozart, Vivaldi, Verdi, Bach - certamente contribuirá para a construção da história. Pecando apenas no uso de alguns coadjuvantes mal aproveitados - a cantora Hazel (Christa Théret) e o cartunista Kyrill (Aubert Fenoy), apenas para citar esses dois exemplos que poderiam acrescentar outras camadas à obra - esta comédia dramática burlesca (e maravilhosa) ainda reserva para o final alguns momentos de tensão dignos dos melhores suspenses da atualidade. Até que ponto estamos dispostos a trilhar nossos caminhos, por aquilo que gostamos? Marguerite, com seus modos sutis, sua persistência tocante e sua alma artística - a seu modo - chega próxima de nos revelar. O que não é pouco.
Nota: 9,1
PS: o filme é baseado na história real da ricaça Florence Foster Jenkins, que teria verdadeiramente tentado a carreira de cantora de ópera no começo do século passado. Para quem se interessar, a versão hollywoodiana - tendo Meryl Streep como protagonista - também circula em circuito comercial. O filme se chama Florence: Quem É Essa Mulher, e é dirigido por Stephen Frears.
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