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terça-feira, 19 de julho de 2016

Cinemúsica - Pulp Fiction: Tempo de Violência

É praticamente impossível falar da equação música + cinema sem pensar em Quentin Tarantino. Muitos diretores utilizaram o expediente com o objetivo de enriquecer as suas experiências cinematográficas, mas, talvez a exceção de Cameron Crowe (de Vanilla Sky e Quase Famosos), poucos tiveram a eficiência desse ex-balconista de videolocadora, que levou a paixão pela sétima arte ao limite, ao se tornar um dos mais importantes realizadores da atualidade. Para Tarantino, muito mais do que a execução do ponto de vista técnico - com enquadramentos precisos, desenho de produção adequado, interpretações impecáveis ou fotografia bem produzida -, o importante mesmo é se divertir. E a música - assim como os videogames, as séries japonesas, os antigos filmes de faroeste spaghetti ou as histórias em quadrinhos obscuras -, é preciso que se diga, tem papel fundamental nesse processo.

Se com o inaugural Cães de Aluguel (1992), o diretor utilizou a trilha sonora de uma maneira digamos, mais econômica, foi com Pulp Fiction - Tempo de Violência (Pulp Fiction), que Tarantino explorou ao máximo as possibilidades do uso da música como parte importante da construção fílmica - capaz de alterar as sensações ou mesmo a nossa percepção sobre aquilo que estamos vendo. Utilizando-se de um verdadeiro caldeirão de referências sonoras, o diretor vai do surf rock - na primeira cena do filme, durante os créditos iniciais quando da execução de Misirlou, regravação de Dick Dale para uma clássica canção grega -, passa pelo boogie woogie do Kool and the Gang - quando vemos Jules (Samuel L. Jackson) e Vincent Vega (John Travolta) conversarem sobre "massagens nos pés" - até chegar ao romantismo lascivo da quente Let's Stay Togheter de Al Green, executada durante a cena em que o boxeador Butch (Bruce Willis) conversa com seu chefe Marcellus Wallace (Ving Rhames), sobre uma luta que ele deve entregar.


Mas é provável que nenhuma canção tenha se tornado tão clássica e referencial, quanto a versão do Urge Overkill para Girl, You'll Be a Woman Soon, regravada a partir do original de Neil Diamond, apresentada pela primeira vez em registro de 1967. Até hoje é praticamente impossível escutar a canção sem lembrar do filme - e da cena em que ela aparece. A sequência ocorre logo após a famosa competição de twist no bar Jack Rabbit's Slim (outra cena clássica!), quando Mia (Uma Thurmann) e Vega dançam ao som de You Never Can Tell de Chuck Berry - é a famosa coreografia da dancinha com os dedos em "V" cruzando o rosto, tão imitada até hoje. Ao chegar em casa, Mia coloca a música em um disco de vinil, enquanto Vega, preocupado com a pouco apropriada aproximação com a "mulher do chefe", vai ao banheiro. É o momento em que Mia praticamente se mata de tanto cheirar e que faz com a trama promova mais uma de suas tantas reviravoltas.

A propósito do roteiro intrincado, a trilha sonora praticamente onipresente - especialmente na primeira metade da película - contribui para criar o clima cool/retrô que serve de amparo para um roteiro que, em linhas gerais, apresenta um panorama sobre a violência em diversas cidades dos Estados Unidos. Utilizando-se de elipses, flashbacks e outras trucagens de edição, Tarantino mantém o espectador ligado em três histórias que ocorrem em paralelo e que serão conectadas, com o desenrolar do filme. Quando Vega aparece, por exemplo, utilizando inexplicáveis calção, chinelo de dedo e camiseta ao estilo "coxinha", no início da projeção, apenas mais tarde entenderemos os motivos disso. Ao brincar ainda com o conceito de "nascer de novo", o diretor ainda subverte a lógica da "segunda chance na vida" para os personagens, apenas para, no instante seguinte, escancarar em nossas telas o fato de que a violência não escolhe nem hora e local.


Abusando, ainda, do charme em diálogos irresistíveis, Tarantino constroi uma obra que utiliza um modelo que, de maneira geral, seria praticamente onipresente em sua filmografia. Os referenciais diversos, recheados de citações a séries, filmes, jogos e HQs de outrora, retornariam ainda em muitas outras ocasiões, talvez atingindo a sua plenitude nesse quesito nos dois filmes da série Kill Bill, lançados em 2003 e 2004. Também nessas películas, o diretor utiliza os temas musicais variados - indo de Quincy Jones a Ennio Morrocone, passando por Johnny Cash e Nancy Sinatra - para ancorar a história sobre a noiva (Uma Thurmann) que praticamente renasce, em busca de vingança. Mas foi com a trilha sonora diversificada, eclética, e com uma indefectível veia pop de Pulp Fiction - Tempo de Violência, que Tarantino pavimentou o terreno para este tipo de abordagem, sentindo-se seguro, a partir dali, para brincar ainda mais com o modelo.

domingo, 10 de janeiro de 2016

Cinema - Os Oito Odiados (The Hateful Eight)

De: Quentin Tarantino. Com: Samuel L. Jackson, Kurt Russel, Jennifer Jason Leigh, Walton Goggins, Demián Bichir, Tim Roth, Michael Madsen e Bruce Dern. Faroeste, EUA, 2015, 167 minutos.

O cinema é a maior de todas as Artes. Ou a junção de praticamente todas elas. Roteiro (a escrita), atuações (artes cênicas), fotografia, trilha sonora (a música), cenários (direção de arte) e outras tantas unidas para criar uma obra pronta a ser apreciada pelos espectadores em comunhão em uma sala escura. A catarse em forma de riso, choro, reações frente ao que se vê na tela e se ouve saindo das caixas de som. Uma orquestração milimetricamente desenvolvida para proporcionar emoções na plateia. O absurdo da vida amplificado em forma de imagens e som. E quando tudo isso vem no pacote genial do diretor americano Quentin Tarantino, temos algo especial - como no caso de seu mais novo filme Os Oito Odiados (The Hateful Eight), o oitavo de sua irrepreensível carreira.

Quando um caçador de recompensas (Russel) está em sua diligência com a prisioneira Daisy Domergue (Leigh) fugindo de uma nevasca, encontra no meio do caminho o Major Marquis Warren (Jackson) que, após ter capturado alguns criminosos e está sem o seu cavalo, pede carona para a cabana mais próxima afim de fugir da tempestade de gelo que se aproxima cada vez mais. Ainda no caminho, encontram alguém que se diz o atual xerife da cidade de Red Rocks (Goggins), que acaba por fazer parte da caravana até chegarem à cabana de propriedade de Minnie e Sweet Dave, que lá não se encontram. Ao invés disso, eles acabam se juntando com o carrasco britânico Oswaldo Mobray (Roth), o mexicano Bob (Bichir) e o misterioso Joe Gage (Madsen), além do general aposentado Sandy Smithers (Dern), que lá estavam. Para não revelar detalhes da trama, resta dizer que a dinâmica entre os personagens será de crescente tensão, visto que todos estão presos em um local cujo ambiente externo é tão ou mais hostil.


Seja na trilha sonora magistral do mestre Enio Morricone, da fotografia em 70 mm de Robert Richardson e do roteiro e direção precisas de Tarantino, tudo funciona neste faroeste que presta uma homenagem ao cinema da década de 60. Mas como trata-se de uma obra tarantinesca, os traços do cinema de autor estão presentes, remetendo a obras anteriores do diretor como Cães de Aluguel e Django Livre. Aqui temos os diálogos inspirados (e extensos), a calma em desenvolver os personagens, os cenários caprichados, a violência extrema, o mistério, e a crítica social, características desenvolvidas na potência máxima. O elenco está fantástico, com destaque para Samuel Jackson (cujo monólogo no meio do filme certamente será lembrado por quem assistir), Jennifer Jason Leigh (como a perigosa, debochada e "saco de pancadas" Domergue) e a surpresa Walton Goggins, cuja expressão lembra muito os faroestes de Sergio Leone e proporciona, junto a Jackson, os momentos mais hilários do filme.

Se levarmos apenas em consideração o aspecto entretenimento, a obra já seria uma experiência altamente satisfatória - vide o aspecto farsesco e de mistério do filme, que lembra muito os romances de Agatha Christie e suas histórias de detetive, além das já manjadas referências cinematográficas (Russel em O Enigma de Outro Mundo) tanto utilizadas pelo cineasta. Mas é ao transformar seu roteiro em uma alegoria da história sangrenta dos Estados Unidos que Tarantino eleva sua obra a uma condição superior de Arte. Temos aqui a busca por recompensas (o capitalismo), a violência contra a mulher (bem como a força desta frente às adversidades), o racismo (o papel do negro e sua segregação, bem como sua busca por espaço em um mundo dominado por brancos), a xenofobia, a colonização inglesa, e a esperança por dias melhores tão desejada pelo presidente americano à época, Abraham Lincoln - mas tão longe de ser alcançada por uma espécie que desde sempre foi fadada à auto-destruição, como o gênio Tarantino sabe demonstrar como ninguém.

Nota: 9,5.