segunda-feira, 25 de julho de 2016

Pérolas do Netflix - Em Nome de Deus (The Magdalene Sisters)

De: Peter Mullan. Com Anne-Marie Duff, Nora-Jane Noone, Dorothy Duffy, Geraldine McEwan e Eileen Walsh. Drama / Terror, Irlanda / Reino Unido, 2001, 122 minutos.

Margaret (Duff), Bernadette (Noone) e Rose (Duffy) são três criminosas da pesada. Margaret, a primeira meliante em questão, cometeu o absurdo de ser estuprada por um primo durante um casamento em família. Pode um negócio desses? Bernadette não fica atrás, no quesito pouca vergonha, já que andava pela escola flertando com os meninos - e isso pelo simples fato de ser uma garota jovem e bonita. Não é estarrecedor? E, não sei dizer se o caso de Rose não é ainda pior, já que a danada teve um filho - pensem vocês - fora do casamento. Fora do casamento! Uma barbaridade! Dado esse cenário, não haveria outra alternativa para as criminosas que não o envio obrigatório, por parte das famílias de cada uma delas, para a prisão, certo?

É evidente que estou ironizando neste primeiro parágrafo, mas se essa sinopse parece coisa de algum roteirista tresloucado que estudou a fundo o papel da mulher em algum lugar muito distante - talvez a Idade Média - saiba que este é apenas o retrato da Irlanda patriarcal dos anos 60. Sim, anos 60, há pouco mais de 50 anos atrás. A "prisão" em questão eram asilos católicos em que as jovens eram enviadas - normalmente pelos pais - para receber todo o "amor de Deus" em forma de humilhações variadas, castigos físicos e trabalho escravo por tempo indeterminado. O objetivo era fazer elas "pagarem os seus pecados". Sem discussão, sem revisão de pena, sem abonos de quaisquer tipos, era lá que centenas de milhares de moças tinham não apenas a juventude, mas as suas vidas cerceadas. Tudo com vistas a obter a redenção pelos pecados da carne - com anulação de qualquer tipo de prazer em vida, com trabalho além do limite humano e proibições de todos os tipos. O tipo de sofrimento experienciado, muito provavelmente, pelos escravos.



O que mais surpreende no filme muito bem construído pelo ator Peter Mullan - em sua segunda e, até o momento, última, incursão como diretor - é saber que a obra é baseada em fatos reais. As instituições das Irmãs Madalenas existiram de verdade, tendo por base a história da própria Maria Madalena  - discípula tida como pecadora pelo fato de vender o seu corpo aos "depravados". Estima-se que mais de 30 mil mulheres tenham sido aprisionadas em asilos desse tipo - sendo a última lavanderia que se tem conhecimento, fechada em 1996. E só esse contexto histórico-religioso, muito bem construído - além de pesado, dramático, melancólico - já é digno de nota na hora de avaliar essa verdadeira Pérola perdida pelos cantos do Netflix. É um filme sufocante, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, e que certamente permanece por horas conosco, após o final da projeção.

Apresentando o microcosmo da instituição como um cenário verdadeiramente opressor, com salas pequenas, apertadas e quentes, a obra ainda investe em uma fotografia azulada e empalidecida, como forma de ressaltar o sentimento permanente de terror vivido pelo grupo de jovens que, cheias de vida, sequer tem o direito de conversar enquanto executam suas tarefas. Nesse sentido, não deixa de ser marcante a cena em que uma das internas "descobre" uma porta aberta para o exterior, onde ela se depara com a natureza cheia de vida e colorida, provavelmente, como nunca ela havia percebido durante a sua existência, até o momento de passar pela clausura. E o fato de retornar para o pátio da entidade, ainda que houvesse essa brecha - ampliada pelo desastroso encontro com um homem que não poderia ser mais machista e preconceituoso - serve para dar conta do medo que rondava as "detentas", que poderiam sofrer severas punições por esse tipo de mau comportamento.


Ainda que tenha pesado um pouco a mão ao apresentar a madre superiora (McEwan) e todas as demais madres como se fossem "o diabo em pessoa" - não posso crer que nenhum delas tivesse um mínimo de piedade ou sentimento de fraternidade para com essas "almas pecadoras" - o filme aposta ainda em pequenas sutilezas para demonstrar o poder da Igreja nas comunidades católicas tementes à Deus. E, nesse sentido, não deixam de ser sintomáticas as sequências em que a madre superiora conta o (farto) dinheiro recebido para manter a lavanderia ou mesmo aquelas que mostram a diferença "nutricional" entre os cafés de ambas as classes - a das madres e a das internas. Em uma época em que a intolerância e a violência contra a mulher ainda reinam - e parecem ganhar força com discursos misóginos internet afora, legitimados por aberrações políticas como o deputado Jair Bolsonaro - um filme como Em Nome de Deus não é apenas uma aula de bom cinema. É também um documento histórico sobre tempos obscuros que, esperamos, jamais retornem.

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