quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Encontro com a Professora - O Criado (The Servant)

Mais um daqueles textos iluminados da nossa querida colunista Rosane Cardoso que nos brinda, dessa vez, com uma análise maravilhosa do ótimo O Criado, de Joseph Losey. Boa leitura!

Sobre criados e patrões
O Criado

Escrito por Harold Pinter, baseado no romance de Robin Maughan, O Criado (The Servant, 1963) é uma pérola. Denso, em preto e branco, pontuado por uma excelente trilha sonora de blues e jazz, este filme inglês é dirigido Joseph Losey. James Fox e Dirk Borgade interpretam, respectivamente, Tony, um aristocrata que compra uma bela casa que precisa de reforma, e Barrett, que atende ao anúncio de Tony solicitando um criado que resolva todos os seus problemas domésticos e pessoais.

E Barrett faz exatamente o que o patrão exigiu: toma conta de tudo.  Nem os avisos da namorada Susan (Wendy Craig) conseguem alertar Tony para o que virá. A chegada de Vera (Sarah Miles), amante de Barrett que se passa por sua irmã, desencadeia a catástrofe anunciada. Tramas, traições, baixaria, perdas. Quando Tony se dá conta da situação em que se meteu, expulsa os “irmãos” da casa. Mas já é tarde demais, pois não consegue mais viver sem a assistência do criado. Readmitido, Barrett impõe suas próprias regras, transformando o patrão em um sujeito patético.


Mas não se trata de uma simples inversão de papéis e é nesta complexidade que está a beleza do filme. Barrett não mais obedece, mas continua servindo. Tony não manda mais, mas segue recebendo pelo que pagou. O paradoxo é que servir Tony dá o poder ao criado e receber tudo nas mãos rebaixa tremendamente o patrão.

A parceria doentia se constrói através de discussões existenciais, brincadeiras infantis, prostitutas decadentes e muito álcool. Com isso, as cenas vão se tornando cada vez mais pesadas. Já não há tomadas externas, nem luz, nem natureza e começa a se destacar uma personagem essencial à trama, a casa, agora o único cenário do filme, com sombras que se agigantam, claustrofobicamente.


À primeira vista, filme parece tropeçar na vulgaridade excessiva de Vera. Porém, é ela que denota a essência moral de Barrett. Francamente, eu preferiria que o criado fosse mais sofisticado – uma espécie de James Stevens “do mal” (personagem de Anthony Hopkins em Vestígios do dia, 1993). Contudo, o meu desejo tem problemas, pois a baixeza dos “irmãos” ratifica a decadência de Tony neste enredo genial sobre a luta de classes. Além disso, se Barrett fosse sofisticado como eu gostaria, ele se converteria em um vilão clássico, elevando a Tony, e Pinter e Losey querem mais da trama do que dicotomias e o rebaixamento das personagens é avassalador, quase niilista. Tony, ao se relacionar sexualmente com Vera, transpõe os limites hierárquicos da pior maneira, não apenas pela diferença social, mas porque a jovem é absolutamente vazia, um objeto sexual sem vontade própria e sem voz.




Nesse sentido, chamo a atenção para o fato de Tony ser sempre chamado pelo primeiro nome (e de “Senhor”, claro, por Barrett), ao passo que o criado é quase sempre tratado pelo sobrenome. A ausência deste tratamento que, no caso do patrão, representaria respeito e no caso do empregado, distanciamento, demonstra o modo como Tony é visto por todos: um jovem tolo e influenciável, não um sir. Quanto ao criado, cabe a ele deixar isso perfeitamente claro. Não “qualquer” criado, mas alguém moralmente medíocre como Barrett. No fim, não há mais distinções entre eles. Gritam um com o outro, xingam-se como se estivessem na sarjeta, deixam cair todas as máscaras.

Soturna, a casa observa.

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