quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Foi Um Disco Que Passou Em Minha Vida - Titãs (Õ Blésq Blom)

Se não me falha a memória eu devia estar completando nove anos quando ganhei de presente dos meus pais, o disco Õ Blésq Blom dos Titãs. Eu não pedi esse álbum, evidentemente, mas na entrada dos anos 90 eu já era aquele gurizinho esquisito, de óculos e gordinho, que passava as tardes de fone de ouvido escutando discos e fitas antigas de rock no três em um do seu Ênio. Havia uma fita dos Beatles que gostava muito. E outra do Elvis Presley. Além de uma coletânea do Mamas and The Papas. E sei lá eu por quê eles acharam interessante a ideia de me presentear com esse registro - o quinto de estúdio da banda de Paulo Miklos, Arnaldo Antunes, Nando Reis e companhia. Sinceramente, não sei se meus pais tinham a consciência da representatividade desse trabalho e de sua relevância para um País que aos poucos se acostumava com a ideia de não ter mais uma Ditadura. Mas o caso é que o disco TAMBÉM ajudou na minha formação musical.

Óbvio que com nove anos nós não temos consciência social de nada. Às vezes nem com trinta e nove anos temos - pense nas pessoas dessa idade que votaram no Bolsonaro, por exemplo? Mas para mim era uma coisa muito diferente, relativamente excêntrica, ouvir aquele repente com um palavreado confuso, cantado pelo casal Mauro e Quitéria, já no começo do registro. Essa abertura, antropologicamente estranha, fazia a ponte para a música Miséria, que efetivamente abria o álbum. Miséria é miséria em qualquer canto / Riquezas são diferentes / Índio, mulato, preto, branco / Miséria é miséria em qualquer canto. Os versos surgiam meio rasgados, sujos, uma batida roqueira que misturava regionalismo, com uma letra que olhava para os vulneráveis, ecoava as aflições dos carentes. Eu não percebia isso num nível de consciência enquanto escutava a canção com um sorriso no rosto. Mas isso me fez desde cedo refletir, talvez até de maneira inconsciente: havia miséria. Em qualquer canto. E a morte não causava mais espanto.


Quando lançou esse trabalho, os Titãs já eram uma banda consagrada, com uma dúzia de hits radiofônicos - Sonífera Ilha, Marvin, Televisão, Não Vou Me Adaptar, Comida e outras - tocando nas paradas. Álbuns como o essencial Cabeça Dinossauro (1986), já haviam tornado a banda uma espécie de porta-voz anti autoritarismo, com músicas como Polícia, Bichos Escrotos, Família, Igreja e outras servindo como denúncia da hipocrisia da sociedade e de suas instituições. Era um disco mais punk. Mais rock. O que Õ Blésq Blom parece ter feito foi atenuar a melodia - sai a agressividade, entra algum tipo de sutileza, que reverbera pop e rimos regionais -, mas mantendo a mesma pegada de crítica. "Havia o momento do Brasil que estava se desenhando muito problemático, uma ditadura militar ainda se desmanchando, a morte de Tancredo. O clima era de desilusão, um cenário de distopia", chegou a afirmar o baterista Charles Gavin em entrevista na época do lançamento de Cabeça. Esse espírito, essa abordagem, se arrastou por mais alguns álbuns, com os Titãs ecoando a fúria juvenil, de quem se recusava a se dobrar para um "sistema".

Com uma mistura de ritmos nordestinos, do repente ao maracatu - que mais tarde contribuiriam para a consolidação do movimento manguebeat -, o disco ainda deu ao mundo a música Flores, talvez um dos maiores hits dos Titãs. Em suas curvas, outras canções como O Pulso, 32 Dentes, Medo e, especialmente Deus e o Diabo (uma de minhas preferidas), reafirmaram a relevância do trabalho, um monumento ao rock cheio de guitarras suingadas, batidas criativas, efeitos sinuosos e que nos apresentava um coletivo em plena forma. Até retornar à moda no final dos anos, quando canções insossas como Epitáfio passaram a fazer sucesso nos bailes do formatura, a impressão que se tem é que os Titãs nunca mais tiveram a energia juvenil apresentada nesse trabalho. Septuagésimo quarto melhor disco da música brasileira - de acordo com votação feita pela Rolling Stone -, o álbum permanece na memória de quem, no final dos anos 80, ainda não sabia bem o que era ter esperança por dias melhores. Mas que encontrava na voz amargurada e cheia de vigor de Mauro e Quitéria, um estranho caminho possível.


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