Chico lançou Construção no auge da Ditadura Militar, quando tinha acabado de retornar do exílio. Encontrou, no início dos anos 70, um Brasil mergulhado em uma crise política e econômica sem precedentes, o que parece ter ampliado ainda mais a importância do registro - que captura bem o zeitgeist daqueles tempos. Com o disco, Chico procurou fugir do óbvio, usando uma série de metáforas em suas canções - o que lhe permitiu, em muitos casos, driblar a censura. Uma espécie de artesanato refinado e original, que transformou canções como Cotidiano, Deus Lhe Pague, Samba de Orly e até a engenhosa e romântica Valsinha em verdadeiros hinos de resistência, de um povo que não queria se calar. Como exemplo, Chico sempre usou o carnaval como uma figura que simbolizava a esperança ou a libertação - como em Vai Passar ou Tô Me Guardando Pra Quando o Carnaval Chegar. Em Construção essas figuras atingem o seu grau máximo de complexidade.
É um disco fácil de ouvir - são pouco mais de 30 minutos - e quase simples no que diz respeito ao instrumental, que equilibra o samba (Samba de Orly), a música romântica (Valsinha), a bossa nova (Olha Maria) e o pop (Cotidiano) em medidas iguais. Já as letras são complexas, dolorosas, urgentes. Deus Lhe Pague ilustra de maneira quase explícita a miséria, a depressão e a falta de perspectivas para uma população obrigada a conviver com migalhas - Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir / Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir. Tudo isso em meio ao clima de tensão crescente, capaz de gerar uma espécie de catarse em seus instantes finais. Já Cordão é mais contundente no que diz respeito ao papel do artista durante a ditadura militar, embora a primeira impressão sobre a letra seja a de estarmos diante de um eu lírico romântico - Ninguém / Ninguém vai me acorrentar / Enquanto eu puder sorrir / Enquanto eu puder cantar. Por outro lado, Samba de Orly (feita em parceria com Tom Jobim e Vinícius de Moraes) tem clima festivo e recomendações para quem está retornando do exílio - Vai meu irmão / Pega esse avião / Vocês tem razão de correr assim / Desse fio mas beija / O meu Rio de Janeiro / Antes que um aventureiro lance mão.
Ainda assim, em meio a tantas canções importantes (algumas até mesmo se tornaram hits comerciais e são até hoje tocadas nas rádios), nada causou mais impacto neste trabalho do que a faixa-título. Com sua estrutura repleta de jogos de palavras que formam um verdadeiro quebra-cabeças de sentidos, Construção utiliza as idas e vindas, as trocas e o intercâmbio entre vocábulos para ampliar a sensação de estranhamento e de quebra de lógica - quase em um jogo matemático que muito tem a ver com a "mecanização do indivíduo", condição apontada pela letra. O embaralhamento, a presença inesperada de antíteses - paredes flácidas, pacotes bêbados -, a adoção de proparoxítonas e a balbúrdia provocada por barulhos de buzinas, de pessoas e de tráfego, tudo parece contribuir para a denúncia da situação de abandono vivida pelo trabalhador, preso em meio a ações automáticas, rotineiras. É a clausura diária traduzida em uma letra dura, fria, impactante e mais atual do que nunca.
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