quarta-feira, 20 de junho de 2018

Foi um Disco Que Passou Em Minha Vida - Chico Buarque de Hollanda (Construção)

Não é difícil para este jornalista que vos escreve essas linhas tortas falar sobre o disco Construção, do MESTRE (sim, tudo em maiúscula) Chico Buarque de Hollanda: o registro foi meu objeto de estudo, quando da realização do trabalho de conclusão de curso na faculdade de Jornalismo, aqui na Univates. Sendo assim, ele é simplesmente o álbum que eu mais escutei na vida. Disparado. E o mais incrível é que, mesmo tendo ouvido essa obra-prima do nosso cancioneiro umas boas dezenas de vezes quando me meti a estudá-la, o causo é que ela nunca me cansa. E, diga-se de passagem, em tempos de Golpe, de desesperança e de desalento, esse álbum, lançado em 1971, nunca foi tão atual. Afinal de contas, a persona aquela que "sobe na construção como se fosse máquina" e "come feijão com arroz com se fosse um príncipe" poderia ser eu, você e cada um de nós que, no fim do dia, ainda mantém a esperança por dias melhores.

Chico lançou Construção no auge da Ditadura Militar, quando tinha acabado de retornar do exílio. Encontrou, no início dos anos 70, um Brasil mergulhado em uma crise política e econômica sem precedentes, o que parece ter ampliado ainda mais a importância do registro - que captura bem o zeitgeist daqueles tempos. Com o disco, Chico procurou fugir do óbvio, usando uma série de metáforas em suas canções - o que lhe permitiu, em muitos casos, driblar a censura. Uma espécie de artesanato refinado e original, que transformou canções como Cotidiano, Deus Lhe Pague, Samba de Orly e até a engenhosa e romântica Valsinha em verdadeiros hinos de resistência, de um povo que não queria se calar. Como exemplo, Chico sempre usou o carnaval como uma figura que simbolizava a esperança ou a libertação - como em Vai Passar ou Tô Me Guardando Pra Quando o Carnaval Chegar. Em Construção essas figuras atingem o seu grau máximo de complexidade.



É um disco fácil de ouvir - são pouco mais de 30 minutos - e quase simples no que diz respeito ao instrumental, que equilibra o samba (Samba de Orly), a música romântica (Valsinha), a bossa nova (Olha Maria) e o pop (Cotidiano) em medidas iguais. Já as letras são complexas, dolorosas, urgentes. Deus Lhe Pague ilustra de maneira quase explícita a miséria, a depressão e a falta de perspectivas para uma população obrigada a conviver com migalhas - Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir / Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir. Tudo isso em meio ao clima de tensão crescente, capaz de gerar uma espécie de catarse em seus instantes finais. Já Cordão é mais contundente no que diz respeito ao papel do artista durante a ditadura militar, embora a primeira impressão sobre a letra seja a de estarmos diante de um eu lírico romântico - Ninguém / Ninguém vai me acorrentar / Enquanto eu puder sorrir / Enquanto eu puder cantar. Por outro lado, Samba de Orly (feita em parceria com Tom Jobim e Vinícius de Moraes) tem clima festivo e recomendações para quem está retornando do exílio - Vai meu irmão / Pega esse avião / Vocês tem razão de correr assim / Desse fio mas beija / O meu Rio de Janeiro / Antes que um aventureiro lance mão.

Ainda assim, em meio a tantas canções importantes (algumas até mesmo se tornaram hits comerciais e são até hoje tocadas nas rádios), nada causou mais impacto neste trabalho do que a faixa-título. Com sua estrutura repleta de jogos de palavras que formam um verdadeiro quebra-cabeças de sentidos, Construção utiliza as idas e vindas, as trocas e o intercâmbio entre vocábulos para ampliar a sensação de estranhamento e de quebra de lógica - quase em um jogo matemático que muito tem a ver com a "mecanização do indivíduo", condição apontada pela letra. O embaralhamento, a presença inesperada de antíteses - paredes flácidas, pacotes bêbados -, a adoção de proparoxítonas e a balbúrdia provocada por barulhos de buzinas, de pessoas e de tráfego, tudo parece contribuir para a denúncia da situação de abandono vivida pelo trabalhador, preso em meio a ações automáticas, rotineiras. É a clausura diária traduzida em uma letra dura, fria, impactante e mais atual do que nunca.


Após Construção, Chico teve outros bons lançamentos, como foi o caso de Meus Caros Amigos (1976) - que teve diversos clássicos, como O Que Será?, Olhos nos Olhos, Mulheres de Atenas e Vai Trabalhar Vagabundo, além de Meu Caro Amigo. Só que é provável que nenhum outro registro tenha tido, até hoje, o impacto provocado por Construção. Divisor de água, o trabalho representa para muitos críticos a "perda de inocência" do artista, que deixa de ver "a banda passar" para se preocupar com temas mais importantes, relevantes e caros para a sociedade. Uma forma de alcançar a maturidade e o profissionalismo, inegavelmente. Não é por acaso que o registro é figurinha fácil em listas de melhores. Em eleição feita pela Rolling Stone, apareceu em terceiro lugar entre os mais relevantes discos nacionais da história. No livro 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer, também tem lugar garantido. É um trabalho inesquecível e fundamental também para nós, aqui do Picanha.

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