terça-feira, 14 de maio de 2024

Cine Baú - Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb)

De: Stanley Kubrick. Com Peter Sellers, George C. Scott e Sterling Hayden. Comédia / Ficção Científica / Guerra, EUA / Reino Unido, 1964, 94 minutos.

Em uma das mais divertidas sequências de Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb), um grupo de líderes norte-americanos - entre eles diplomatas, militares e conselheiros - debate, em uma sala do Pentágono, o futuro da humanidade. Após uma ligação do presidente dos Estados Unidos Merkin Muffley (um dos três papeis de Peter Sellers) ao premier soviético (um certo Kissoff, que parece estar bêbado do outro lado da linha), tem início uma briga acalorada entre o general Turgidson (George C. Scott) - um sujeito que tem aquele tipo de arrogância militar, que esconde sua mais completa mediocridade sob o véu da suposta liderança - e o embaixador russo (um Peter Bull abusando do estereótipo). Após uma discussão quase infantil, um cai sobre o colo do outro, sendo repreendidos na sequência por Muffley: "senhores, vocês não podem brigar aqui, este é o salão de guerra".

Olhando em perspectiva essa pode parecer, atualmente, uma piada apenas boba. Mas também foi a forma que Stanley Kubrick escolheu para debochar da relação quase pornográfica entre esses homens - no caso, esses militares sempre prontos a vestir a farda e atirar para salvar a sua Pátria, nem que para isso morram 20 milhões de pessoas desnecessariamente (imagina, poderiam ser 150 milhões) - e a guerra. Sim, em 1963 já decorriam quase 20 anos da Guerra Fria, que colocava frente à frente o Ocidente e o bloco soviético - um impasse entre duas superpotências que mediam forças no abstrato e em estratégias como a de colocar o medo na cabeça do "inimigo" como forma de desencorajá-lo a atacar. Em uma época em que o escárnio (e o meme) estavam bem longe de pautar o debate, não dá pra negar que foi uma jogada ousada. Que talvez tenha assustado as plateias, especialmente pela cara de pau descarada em tirar sarro de paranoias comunistas (sim, sempre elas) e de outros delírios bélicos.


 

Aliás, nesse sentido, alguns temas parecem tão atuais, que mais parecem saídos de algum zap bolsonarista, ou fruto de alguma teoria conspiratória aleatória propagada por incels de extrema direita que passam o dia nas profundezas da web. Em certa altura o general que leva o sugestivo nome de Jack D. Ripper (Sterling Hayden) explica ao capitão Mandrake (o segundo papel de Sellers), seu colega em uma base militar, sobre como os soviéticos estão utilizando a fluoretação da água como uma estratégia bélica em seu favor. "Esta é a trama comunista mais perigosa que já tivemos de enfrentar", vaticina Jack a um incrédulo Mandrake, dando a entender que todos os seus problemas, desde a sensação de cansaço (e de falta de apetite sexual), até um certo vazio existencial, são efeitos da água batizada. "Você já percebeu que eles não tomam água, somente vodca?", pergunta. Sim, se hoje em dia um delírio do tipo não faria feio em meio a blocos de debates sobre agenda globalista, sósias do Lula, chip chinês na vacina, mamadeira de piroca e antenas Haarp, talvez não seja por acaso.

Porque o caso é que talvez só rindo pra gente conseguir dar conta. Já era assim na década de 60 e segue sendo hoje em dia e, em tempos tão nervosos como os que vivemos - de iminência de Terceira Guerra, de crise de refugiados, de desastres climáticos, de ascensão da extrema direita, de tecnologia desenfreada e de pandemia -, não deixa de ser interessante notar como a comédia de Kubrick segue irresistivelmente atual. "A paz é a nossa profissão" é a frase que se vê em um cartaz fixado nas paredes de uma base militar que é atacada por aqueles que deveriam estar do mesmo lado das trincheiras. Para o sinistro Dr. Strangelove do título (novamente Sellers) as disputas por poder que podem levar a explosão de uma Máquina do Juízo Final - uma ogiva nuclear de ativação automática - podem ser o caminho para a solução eugenista. Na teoria do cientista, que parece ter um certo pendor para o nazismo, a perspectiva de explodir o mundo pode abrir a brecha para um plano de supremacia branca em que cada homem teria direito à dez mulheres ("mas elas terão que ser bem escolhidas", lembra um dos idosos decrépitos da Sala de Guerra). 

 

 

Enquanto esses ineptos decidem sobre o que acontecerá no século seguinte - e que pode estar ao alcance de um botão -, um grupo de caipiras, com direito a sotaque sulista e tudo e uma Bíblia minúscula que também conta com expressões russas, é literalmente enviado pra morte. Tudo isso depois de um equívoco de Ripper que subverte os protocolos enviando aviões para um ataque aéreo aos "vermelhos". Há uma história interessante que está n'O Livro do Cinema sobre a intenção que Kubrick tinha de que a cena final fosse uma guerra de tortas entre aqueles homens, no estilo pastelão. Mas ele mudou de ideia e substituiu a sequência pela da explosão das ogivas nucleares. "Era importante que o público soubesse que, por mais caricatos e palhaços que aqueles sujeitos parecessem, eles eram de fato perigosos". O resultado dessa poderosa combinação conferiria ao projeto três indicações ao Oscar - Filme, Diretor, Roteiro e Ator (Sellers). E pavimentaria ainda o caminho para que Kubrick alcançasse grande fama entre os fãs de cinema, com obras-primas, como, 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), Laranja Mecânica (1971) e Nascido Para Matar (1987) - que, em alguma medida, revisitariam os mesmos temas. Fundamental.

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