Poucas vezes um filme foi tão impactante em sua análise do círculo vicioso de violência a que o sujeito pode estar inserido - seja ele representado por ações pessoais ou pela opressão do Estado em sua relação com o indivíduo - do que no magistral Laranja Mecânica (A Clockwork Orange), até hoje um dos mais cultuados filmes de Stanley Kubrick. Sim, a obra se passa em um futuro que não sabemos qual, com personagens excêntricos, figurinos e cenários assépticos e sombrios e linguagem estilizada. Mas o ponto nevrálgico da abordagem de Kubrick, tão cara aos tempos em que vivemos - em que o ódio, a intolerância e a falta de empatia, ou mesmo o fascismo travestido de ideologia política, são a ordem do dia - permanece inalterado. Aliás, em uma breve leitura das notícias do dia na internet não será difícil encontrar casos de espancamentos de moradores de rua, de estupros e de assassinatos, fora as agressões institucionais generalizadas promovidas a rodo tendo o lombo da população como alvo - como no recente caso da tão falada PEC 241.
A propósito, uma análise do filme de Kubrick feita da "frente pra trás" permite inferir o fato de que a legitimação da violência justamente por aqueles que deveriam prezar pelo bem-estar da população - sejam eles representados pelos governantes, pela polícia ou até mesmo pela Igreja - pode estar no cerne dos eventos que presenciamos nesse clássico. Na primeira metade do filme somos apresentados a Alex (Malcolm McDowell), líder de um grupo sádico de delinquentes (os drugues Peter, George e Dim) que tem como "diversão" aquilo que chamam de a boa e velha ultraviolência - que nada mais é do que roubar, matar e estuprar, além de passar os dias em uma taverna hedonista enchendo a cara de leite-com. (Aliás, o fato de se nutrirem com leite, ainda que batizado, não deixa de ser uma boa ironia, que pode estar relacionada aos estudos de Freud sobre o desejo sexual como energia motivacional primária da vida humana, e que seria latente desde a infância.)
Em um certo dia, o grupo de drugues passa a mostrar descontentamento com as ações de Alex, que reafirma sua liderança por meio de um ataque aos companheiros. Mais tarde, após invadir a mansão de uma ricaça, Alex a acertará com uma escultura de formato fálico - em uma das tantas sequências memoráveis da película - para, no instante seguinte ser traído por Dim, que o atinge com um copo no rosto. É a violência gerando violência num ciclo (quase) interminável e que resultará em Alex sendo preso e condenado a 14 anos de reclusão por assassinato - é o início da segunda parte. E, nas mãos do Estado após dois anos de sentença, será direcionado, por sua vontade, diga-se, para uma nova terapia experimental para criminosos, conhecida por Tratamento Ludovico. A terapia, que prende a pessoa a uma cadeira com os olhos permanentemente abertos, consiste em assistir à exaustão imagens de violências de todos os tipos com a intenção de refrear os impulsos destrutivos do sujeito, dando a ele condições de retornar para o convívio da sociedade.
Sim, Alex retorna a sociedade após um festival de abusos daqueles que lhe estão tratando, mas perde o que poderia ser considerado o livre-arbítrio. Ou a capacidade de fazer escolhas de acordo com a sua moral, uma das principais questões da película. E, como sujeito zumbificado (e, agora, bondoso), que se horroriza na prisão diante da presença de uma mulher de topless ou do lado de fora ao reencontrar os alvos de sua catártica violência - ou mesmo escutando Beethoven, seu compositor preferido - Alex passa a ser o não-humano, a laranja mecânica que dá nome ao filme (orgânica por fora, mecânica por dentro). Sim, é complexo. Sim é um grande filme. Sim, há toda uma abordagem política (é possível notar esse debate partindo dos próprios personagens em relação a situação de Alex), psicológica, social e filosófica que, se por um lado, pode representar uma verdadeira salada ideológica em que não existem mocinhos e nem bandidos, por outro representa a consagração de um diretor com pleno domínio da técnica e com ampla capacidade de análise de uma sociedade individualista, niilista e hedonista.
Laranja Mecânica era o oitavo filme de Kubrick, que já havia feito pelo menos dois outros clássicos: Dr. Fantástico (1964) e 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968). E, até hoje, ele divide opiniões. Especialmente pela utilização de uma violência estilizada - que mais tarde seria repetida por tantos outros, como Tarantino - capaz de tornar os primeiros vinte minutos da película quase insuportáveis para alguns (e o que dizer da nova utilização de Singin In the Rain, na trilha?). Apresentando ainda uma sociedade hipersexualizada e fetichista que (parece) utilizar o prazer como válvula de escape - observe como em praticamente todos os cenários há imagens fálicas ou pinturas e fotos de homens e mulheres nus ou em atos sexuais (o que talvez pudesse tornar o comportamento de Alex e sua gangue mais "natural", se é que isso é possível) o filme ainda se encerra com uma dúvida em relação a nova condição de Alex, agora apadrinhado pelos engravatados que tanto lhe instigaram: estaria ele efetivamente curado? Mais um ponto positivo para este clássico, 46º colocado na lista de 100 Melhores do American Film Institute (AFI), divulgada em 1998.
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