terça-feira, 28 de maio de 2024

Novidades em Streaming - Blackbird Blackbird Blackberry

De: Elene Naveriani. Com Eka Chavleishvili, Temiko Chichinadze e Lia Abuladze. Drama, Georgia / Suiça, 2023, 111 minutos.

Um filme sobre uma mulher de meia idade que tenta fugir de um conjunto de regras comportamentais que, supostamente, ela deveria seguir - ainda mais quando o cenário é um pequeno povoado da Geórgia, seu País de origem. Esse é o ponto central de Blackbird Blackbird Blackberry, obra da diretora Elene Naveriani, que foi exibido na quinzena de realizadores do Festival de Cannes do ano passado e está disponível na Mubi. Sim, a gente está em 2024 e, apesar de haver uma série de avanços em questões de gênero, muitas mulheres ainda precisam confrontar o padrão estabelecido de expectativas a respeito de suas próprias vidas. Em resumo, em uma sociedade patriarcal, ainda haverá estranhamento diante da independência feminina, do poder de escolha, da personalidade. E é exatamente esse o caso da nossa personagem central, no caso a sisuda e taciturna Etero (a ótima Eka Chavleishvili), a proprietária de um mercadinho local.

Mulher de poucas palavras, Etero vive uma vida tranquila entre passeios nas verdejantes montanhas locais onde colhe amoras, em encontros com as amigas fofoqueiras da vila e em idas a sua loja de doces preferida, onde saboreia suntuosos bolos folhados. Ainda no começo da história, ela passa por uma experiência de quase morte: ao observar um pássaro negro - no caso um melro (que, aliás, tem todo um simbolismo ligado à tentações sexuais e outros desejos) -, ela escorrega e por muito pouco não despenca de uma montanha. O trauma é tanto que ela não apenas chega a ter visões de sua queda, mas também parece despertar para tudo aquilo que até então, talvez estivesse reprimido. Não por acaso, quando o entregador Murman (Temiko Chichinadze) aparece para deixar algumas mercadorias, quem se entrega (com o perdão do trocadilho), é ela. Ao final do ato, em tom tão debochado quanto sincero ela afirma: "lá se vão 48 anos de virgindade".


 

O caso é que Etero está muito longe de ser uma mulher padrão - ou aquilo que se convencionou chamar de padrão. Ela já tem alguma idade e ainda descende de uma família traumatizada (e traumatizante), que ainda lhe culpa pela morte da mãe, logo após o seu parto. Criada pelo pai e pelo irmão, ela crescerá cercada pela ideia de um mundo dominado pelos homens - ainda que, de forma contraditória, opte muitas vezes por se afastar deles, escolhendo a própria liberdade e a solitude como estilo de vida. Tanto que não são poucas as cenas em que suas amigas insistem no fato de que ela só se sentirá completa quando tiver um homem pra chamar de seu - por mais que todas ao seu redor pareçam apenas infelizes em suas vidinhas matrimoniais. O falatório local piora com o fato de Murman ser casado, e seus encontros secretos serem apenas de cunho sexual. Nesse sentido, não deixam de ser divertidas as tiradas de Etero - "se paus e casamentos fizessem as mulheres felizes haveria muito mais mulheres felizes" -, e suas ações, como a manutenção das camas de solteiro, ainda que próximas, nas escapadas com Murman.

Sim, o espectador mais acostumado ao cinema de todos os cantos poderá dizer que não há exatamente uma novidade no projeto feminista de Naveriani. Aliás, os filmes da Georgia tem sido pródigos em discutir mais abertamente os conceitos de família, gênero, opressão às mulheres e seu papel em ambientes mais fechados, vigiados - como por exemplo no caso do irresistível My Happy Family (2017), que já foi resenhado aqui. Mas aqui parece haver um frescor que dialoga mais com a vida real, as incertezas diante da complexidade do mundo e até uma certa ingenuidade paradoxal em relação a um feminismo mais instintivo ou inconsciente. Longe de um mundo tecnológico ou cronicamente online, Etero não terá certeza do que realmente ocorre com seu corpo, quando tem início um sangramento vaginal meio contínuo. Menstruação? Rompimento do hímen? Câncer terminal? As dúvidas existenciais da protagonista têm a sua força ampliada pelo seu olhar severo. O final pode ser meio agridoce para uma produção que tem lá a sua aspereza. Mas também tem sentido alegórico: a vida desabrocha. E continua. E é importante que as mulheres possam decidir o rumo sobre ela.

Nota: 8,5


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