De: Lúcia Murat. Com Grace Passô, Joana de Verona, Alex Brasil e Babu Santana. Drama, Brasil / Argentina / Portugal, 2017, 111 minutos.
Poucas vezes a esquerda acadêmica - aquela que habita as bolhas universitárias e institucionais, mas que muitas vezes se mantêm distante dos problemas reais do Brasil e de seu povo -, foi tão bem retratada como no caso da psiquiatra Camila, a personagem da luso-brasileira Joana de Verona, no filme Praça Paris. Aliás, este muitas vezes costuma ser um problema gritante do campo progressista: enquanto se empenha longamente em debates intermináveis no Twitter sobre a necessidade de adoção ou não de pronomes neutros, esquece que a massa trabalhadora tem muitas outras preocupações em seu cotidiano. Violência, racismo, desemprego, salário insuficiente, medo ou mesmo uma incerteza generalizada sobre o futuro. Ao cabo, uma mulher de classe média, bem nascida, que teve todas as condições de estudar e alcançar uma carreira como pesquisadora, tem condições de contribuir ou mesmo interferir na vida de uma mulher pobre, negra, periférica e que ainda carrega consigo uma série de traumas do passado?
Ok, a gente sabe que empatia é importante, e que mais do que nunca um senso de alteridade será mais do que necessário nesses casos. Mas será suficiente? Existe algo que é o País real com todos os seus conflitos, barulhos, rotinas e caos do dia a dia que talvez os intelectuais, enfurnados em seus apartamentos sempre posicionados na parte mais alta dos prédios sofisticados, em coberturas elegantes, regadas a vinhos finos e alimentação balanceada, talvez não enxerguem. Não é que não haja boa vontade. Às vezes até há. Mas nem sempre isso basta. Antes das eleições de 2018 ficou famosa a frase do cantor Mano Brown, dos Racionais MCs, que lembrava sobre a necessidade imediata da esquerda de reconquistar a multidão, para que se evitasse cair no precipício. "Tem que entender o que o povo quer e se não sabe, volta pra base", vociferava o artista em um discurso no Rio de Janeiro que ficaria famoso e que, em alguma medida, antecipava o caminho da nação rumo à extrema direita, enquanto o outro lado se perdia em abstrações. "Ninguém solta a mão de ninguém" e "ele não" dizia a esquerda festiva. Enquanto Bolsonaro tratorava o País.
Em alguma medida e de forma quase premonitória esse é o tipo de narrativa que guia a trama da produção da sempre ótima Lúcia Murat, do excelente Quase Dois Irmãos (2004). Além de terapeuta, Camila é uma pós-graduanda da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), que está concluindo seus estudos sobre violência urbana no Estado. É nesse habitat seguro e distante da realidade, que a jovem começa a atender Glória (Grace Passô), que é ascensorista no campus e vive no Morro da Providência. Glória, mulher negra e periférica, tem uma vida diametralmente oposta à de Camila: no outro canto da cidade vive a rotina em meio às ruas apinhadas, os metrôs lotados e a busca por algum fiapo de afeto, qualquer que seja. Em seu cotidiano, também se ocupa de visitar o seu irmão Jonas (Alex Brasil), que está preso por conta de eventos passados que, aos poucos, serão esclarecidos. E como forma de adicionar ainda mais complexidade a tudo, Glória é frequentadora assídua de cultos evangélicos, onde é aconselhada pelo pastor vivido por Babu Santana. Nada mais Brasil do Brasil.
Ao cabo, esse é o tipo de filme que nos dá um balão justamente por quebrar as expectativas - especialmente no que diz respeito ás típicas narrativas de brancos salvadores, tão comuns no cinema hollywoodiano. Em certa altura, por exemplo, Glória acaba por ser agredida por um grupo de policiais, que acredita que ela possa estar funcionando como uma espécie de leva e traz de seu irmão que, mesmo preso, talvez esteja agindo nos bastidores para movimentar o tráfico. É época de UPP e as coisas mudaram no morro. A violência parte dos dois lados. Retaliações, agressões, ameaças. Camila acha que Glória deve denunciar essas ocorrências. Aliás, mais do que isso: crê na capacidade de a universidade ajudá-la de alguma maneira. Ledo engano. A faculdade, muitas vezes, parece pródiga em construir longos tratados teóricos sobre os problemas sociais, políticos, culturais e econômicos do Brasil. A portas fechadas, uma galera bem tratada a leite com pera, que perpetua seus privilégios se arroga ter a capacidade de tomar decisões a respeito do que ocorre nas favelas, nos rincões. Que Camila seja apenas uma portuguesa ressentida radicada no Brasil, talvez não seja por acaso. É parte dessa potente alegoria sobre um Brasil de contrastes em que mesmo aqueles que estão do mesmo lado, ou no mesmo campo, permanecem confortavelmente distantes, se alimentando da mesma estrutura racista que, supostamente, combatem. Filmaço que tá disponível na Netflix.
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