De: Gabriel Martins. Com Cícero Lucas, Camilla Damião, Carlos Francisco e Rejane Faria. Drama, Brasil, 2022, 115 minutos.
[ATENÇÃO: ESSE TEXTO CONTÉM ALGUNS SPOILERS DE LEVE]
Aliás, a obra já abre com o pequeno Deivinho (Cícero Lucas) contemplando o céu estrelado, enquanto ao fundo ouvimos foguetórios, buzinaço e gritos em comemoração à vitória que colocaria o País no caminho das trevas de uma extrema direita que sempre se vangloriou da necessidade de "destruir muita coisa, para depois construir". "Desfazer" diria Bolsonaro. Cultura, ciência, saúde, educação, habitação. Todos os nossos índices piorariam, o que faz com que, de alguma forma, esperemos de forma quase inevitável a derrocada da família Martins - composta ainda pelo pai Wellington (Carlos Francisco), pela mãe Tercia (Rejane Faria) e pela irmã Eunice (Camilla Damião), além de Deivinho. Como para qualquer família que viveu o doloroso outubro de 2018, não havia muito tempo para refletir sobre o momento político: era necessário levantar no dia seguinte, trabalhar, estudar, sacodir a poeira e tocar a vida. Sonhar, dentro do ônibus apinhado, por dias melhores.
Por sinal, para Deivinho, o sonho ganha contornos quase dramáticos - e um tanto existenciais - para quem nasceu em uma família preta e periférica da região de Contagem em Minas Gerais: dirigindo persistentemente seu olhar curioso para o céu, deseja ser um astrofísico, para participar de uma missão que, em 2030, pretende colonizar o Planeta Vermelho. Em seus horários de folga gasta longas horas assistindo vídeos no Youtube do astrólogo Neil deGrasse Tyson. Só que Wellington deseja para o filho um outro destino: o de jogador de futebol. E a insistência em levá-lo a peladas e a peneiras contra a vontade do rapaz faz com que se estabeleça um dos tantos pequenos conflitos da narrativa. Já para Eunice, o sonho de "liberdade" tem a ver com o fato de ser lésbica em uma família pobre e religiosa. Nesse contexto de idas e vindas, Tercia, uma empregada doméstica, se vê traumatizada por um episódio de inusitada violência na rua, que faz com que ela acredite que esteja atraindo energias ruins para a casa. Ainda que no nosso íntimo, a gente saiba que a doença em si, como diz a Eliane Brum, se chama Brasil mesmo. É essa a casa que carece de um feng shui permanente.
De forma bastante paciente, Gabriel Martins constrói o roteiro sem muita pressa, saltando de um núcleo a outro da família, mostrando como mesmo em um cenário de desolação ou de dificuldades dentro do universo que habitam, o quarteto central encontra forças para persistir e resistir, com senso de humor e meio que "na marra". Sutil, o diretor não esfrega na cara do espectador as diferenças sociais, os preconceitos, o racismo estrutural ou o sufoco da classe trabalhadora, ainda que o tempo todo esses elementos estejam lá. Em uma cena, por exemplo, Wellington ouve de seu colega de trabalho no luxuoso complexo de apartamentos em que ele é uma espécie de zelador, sobre a vontade de dar um "tchibum" naquelas piscinas maravilhosas que eles estão limpando em um dia de calor (e é quase inevitável pensar na Regina Casé e no que impecável Que Horas Ela Volta? na hora em que escutamos o sempre divertido Russo Apr apresentar seu ponto de vista). Em outro momento Eunice se sente desconfortável na presença da família da namorada, que é claramente melhor de vida. Superar esses obstáculos íntimos da rotina doméstica será a chave para levantar a cabeça. "Eu tô viva" lembra Tercia em certa altura, ao perceber que ela pode ter se salvo de um grave acidente, de forma meio inesperada.
Em linhas gerais trata-se de uma experiência vigorosa e naturalista, cheia de doçura e de instantes comoventes, que ainda arremessa uma pá gigante de cal em quem ainda acredita, em pleno 2022, no discurso da meritocracia, ou de que todos poderão chegar juntos ao mesmo lugar se forem esforçados o suficiente. O final pode não ser assim tão otimista, ainda que a eleição de Lula, que sempre olhou com mais carinho pra classe trabalhadora, jogue um pouco de poesia para o instante em que Tercia, enfim, adormece com gosto (depois de uma temporada inteira de insônia). Foram anos de muita tensão. De muito sofrimento. De um verdadeiro massacre - ampliado pela péssima gestão da pandemia (algo que nem aparece no filme). Grande parte do povo desceu até onde deu pra descer. Perdeu emprego, viu oportunidades se desfazerem, sonhos se despedaçarem. A miséria acontecer. É hora de olhar pro céu novamente. Para encontrar refletido no brilho das estrelas a esperança por dias melhores, com mais justiça social, mais oportunidades, mais políticas públicas. Aqui, ali, acolá. Em Minas Gerais. Em Marte. Não custa sonhar.
Nota: 9,0
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