De: Sebastián Lelio. Com Florence Pugh, Kíla Lord Cassidy, Tom Burke e Ciarán Hinds. Drama, EUA / Reino Unido / Irlanda, 2022, 109 minutos.
Não é novidade afirmar que a prática religiosa em si não chega a ser um problema. Cada um tem suas crenças, sua fé, suas convicções. O que é questionável mesmo é o "fã clube". O fanatismo. Que nunca faz bem. É assim nos dias de hoje - e basta ver notícias que dão conta da redução da cobertura vacinal no País (e que também tem a ver com o extremismo religioso) para que tenhamos uma ideia do retrocesso -, era mais ainda no passado, quando a ciência passou a ocupar um espaço cada vez maior na sociedade, funcionando como um contraponto à doutrinação religiosa. E esses polos distintos podem coexistir de forma pacífica? Quais os limites éticos, morais que envolvem esse suposto antagonismo? Em tempos de Deus acima de todos e de presidente da República colocando o conhecimento científico em cheque, um filme como O Milagre (The Wonder) é muito mais do que uma mera reminiscência que nos faz viajar mais de 150 anos atrás. A meu ver é uma forma criativa de olhar para os dias de hoje, a partir de eventos históricos.
E o que seria de nós sem uma boa história para contar, não? Apostando na metalinguagem como recurso, o diretor Sebastián Lelio - aliás, um dos motivos pelos quais me senti atraído para o projeto, já que sou fã de obras como Gloria (2013), Uma Mulher Fantástica (2017) e Desobediência (2018) -, abre o filme com uma narração em off em um estúdio de cinema. Equipamentos de filmagem, de luz, cenários. Um travelling nos conduzirá para uma casa improvisada onde mergulharemos no ano de 1862, na Inglaterra. É nesse local que vive à sombra da Grande Fome, que seremos apresentados a enfermeira Lib Wright (Florence Pugh) que é chamada para uma pequena e remota vila na Irlanda para acompanhar a rotina da jovem Anna O'Donnell (a ótima Kíla Lord Cassidy) que, aparentemente, parou de comer. Mais precisamente, a menina de 11 anos está há quatro meses, desde o seu último aniversário, sem se alimentar. O que tem atraído turistas e peregrinos, que acreditam estar diante de um milagre. Qual o mistério, afinal? Como é possível alguém sobreviver dessa forma?
Lib chega ao vilarejo com o ceticismo natural dos investigadores. Anna explica à Lib que não precisa se alimentar. Que para ela, o "maná que vem do céu" é o suficiente. No mesmo ambiente a Irmã Michael (Josie Walker) alternará turnos com a enfermeira. Claramente se está em uma comunidade em que será mais fácil ser guiado pela fé católica cega como meio de sobrevivência, do que pelo eventual cartesianismo da ciência. Se aproximando de Anna, a protagonista a isolará da família como forma de melhor estudá-la. O que possibilitará desvendar os supostos mistérios por trás desse milagre - e as reviravoltas do enredo, é preciso que se diga, são construídas de forma elegante, quase elegíaca, com o uso do primoroso desenho de produção, da fotografia suave e levemente adocicada (ainda que melancólica) e. especialmente, da trilha sonora, sombria e onírica em igual medida. Todos recursos estéticos que reforçam o poder da narrativa que acompanhamos. Há uma tensão meio palpável em meio àquele cenário ermo, de relva e de cinza, e que caberá a Lib confrontar.
Evidentemente não será tarefa fácil. Num universo em que é mais lógico acreditar em uma suposta intervenção divina do que na ciência, Lib ainda precisará lidar com o patriarcalismo, que envolverá sequências constrangedoras de uma espécie de comitê - formado por, entre outras lideranças, o padre Thaddeus (Ciarán Hinds, visto recentemente em Belfast) - que parece desconfiar o tempo todo das práticas da enfermeira (ela é convidada apenas a observar, sem jamais interferir). A "ajuda" partirá de um jornalista (Tom Burke), que está interessado na história e que poderá contribuir para que a luz seja definitivamente jogada no caso. Ao cabo trata-se de uma experiência profunda, elegante, que coloca o dedo na ferida quando o assunto é o conservadorismo excessivo e a dificuldade de lidar com a quebra de paradigmas, especialmente em comunidades mais tradicionais. "Ah, então a última coisa que ela comeu foi farinha com água?" pergunta Lib em certa altura para mãe da jovem, que se sente ultrajada com a forma com que a profissional trata o "corpo de Cristo" - a hóstia. Nesse conflito cego parece haver apenas uma prejudicada. E para Lib será preciso muita força para enfrentar isso.
Nota: 8,0
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