segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Cinema - Os Miseráveis (Les Misérables)

De: Ladj Ly. Com Damien Bonnard, Alexis Manenti, Djibril Zonga e Issa Perica. Drama / Policial, França, 2019, 101 minutos.

"Meus amigos, lembrai-vos sempre de que não há ervas daninhas nem homens maus: há sim, maus cultivadores". Essa frase do escritor Victor Hugo resume a essência do cinema caótico estabelecido em Os Miseráveis (Les Misérables), ainda que pouco tenha a ver com o clássico literário protagonizado por Jean Valjean. Quer dizer, ao menos em partes, já que temas caros ao autor - as injustiças sociais, o abuso de autoridade, a falta de perspectivas das camadas mais vulneráveis -, parecem se espalhar em cada frame da película. Assim como ocorre com outros filmes franceses, este lança um olhar para o lado menos glamouroso de sua romântica capital. Paris está lá e é apresentada em seu esplendor já na primeira cena, quando a Torre Eiffel surge como cenário de fundo para a catarse coletiva vivida pelos franceses em meados de 2018, quando sua seleção foi campeã de mundo de futebol. Mas o futebol, a gente sabe, é uma alegria efêmera. E a vida, com todos os seus percalços, continua. Deve continuar.

Assim que passa o preâmbulo do filme, somos apresentados aos integrantes de uma Brigada Anti-Crime que atua na periferia parisiense - mais precisamente no distrito de Montfermeil. Trata-se de um local com grande miscigenação cultural e racial, com muçulmanos, ciganos, nigerianos e os próprios franceses convivendo em um contexto de pobreza, em prédios atabalhoados de gente. Stéphane (Damien Bonnard) é o novato, que está chegando para trabalhar na delegacia local. Sofre bullying de seus colegas de "front" - os veteranos Chris (Alexis Manenti) e Gwada (Djibril Zonga), que utilizam métodos pouco convencionais em suas abordagens. Algo que é estabelecido na forma agressiva com que interpelam três jovens adolescentes que, supostamente, poderiam estar em posse de drogas. A tensão é latente. Parece haver alguma raiva guardada, que é extravasada em tudo e em cada comportamento. Sempre agressivo e desconfiado, Chris parece uma pilha de nervos pronta a explodir.


O estopim desse cenário de crise permanente vivida nesse dia se dá quando um filhote de leão desaparece do circo local. Esse acontecimento prosaico provoca um choque entre dois grupos locais - a gente percebe que o sumiço do leão é a desculpa para a discussão de algo maior -, que quase resulta em tragédia. Tudo piora quando os policiais descobrem que o responsável pelo sumiço do leão é o pequeno Issa (Issa Perica). Bom, uma confusão envolvendo jovens e crianças do bairro que se revoltam com a forma opressiva com que a polícia trata do caso, resulta em um tiro de bala de borracha no rosto de Issa. E como se tudo já não estivesse beirando o colapso, a cena estapafúrdia ainda foi gravada por um outro menino que, sabe-se lá como, possui um drone que utiliza para filmar os prédios da vizinhança. Sim, poe parecer meio confuso, mas o resumo da ópera é: abuso policial + revolta dos adolescentes + tiro no ROSTO de uma criança. E a brigada iniciando a partir disso, uma verdadeira via crúcis para tentar encobrir o caso.

É um filme caótico, anárquico, desordenado, com homens acoados tentando ganhar qualquer coisa no grito. Ninguém parece conseguir falar sem que seja na ameaça, na bala ou com bastões e armas na mão. A França miscigenada, cheia de pessoas de etnias diversas, de outras religiões e povos, parece não saber como conviver harmoniosamente e o filme parece mandar um sinal para o mundo a respeito da explosão de ódio, de intolerância e de preconceitos diversos, que surge a todo instante no formato de comportamentos xenófobos ou racistas. É uma obra urgente, concisa, que "dá na cara" do espectador. Que lembra que violência gera violência e que não se alcança paz de verdade apenas assistindo juntos a uma partida de futebol. Nesse sentido, poucas vezes se viu um filme tão complexo e tão cheio de camadas na análise do comportamento de seus personagens. Quem afinal são os violões? Os mocinhos? Como reagir em uma vida em que a miséria é a rotina e a burguesia se refestela à distância? Não são perguntas fáceis e o diretor estreante Ladj Ly não oferece respostas fáceis - e nem respiros possíveis, ainda que a última cena da película pudesse nos fazer acreditar em algum tipo de caminho possível, em uma pausa dramática que remete aos poucos instantes de bondade.


Bom, são tantas as virtudes do filme que ele faturou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes em um empate com Bacurau. Tecnicamente, a câmera está sempre no rosto de seus personagens, quase como um documento, sem nunca estabelecer verdadeiramente algum deles como mais relevante (como se o ator principal fosse a própria massa). Já a edição de som também confere urgência, funcionando de forma orgânica, reforçando inclusive aspectos da própria violência. Para nós, brasileiros, é impossível não pensar em filmes como Tropa de Elite (2007) ou Cidade de Deus (2002), em que somos também jogados no meio do caos da periferia - assim como é para Stéphane, que tenta manter um mínimo de sanidade em meio a bagunça desse dia. Mas que também compreenderá em algum momento os métodos pouco ortodoxos de seus colegas, no contexto em que se encontram. A obra foi indicada ao Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira. Não fará frente ao incensado Parasita (2019), certamente. Mas a nominação é justa.

Nota: 9,0

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