quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Cinema - Benedetta (Benedetta)

De: Paul Verhoeven. ComVirginie Efira, Daphne Patakia, Charlote Rampling e Lambert Wilson. Drama / Romance, Bélgica / França / Holanda, 2021, 131 minutos.

Vamos combinar que ao pensarmos em figuras sacralizadas da Igreja Católica, dificilmente imaginamos os componentes mais "humanos" de suas composições. Os santos ou mesmo os canonizados sempre surgem em nossa mente envoltos em uma aura elevada, superior, mística - numa mistura que evoca milagres, fé, atos solenes, veneração. Algo que está acima de tudo e que vai para muito além da organicidade da carne, da materialidade do corpo, dos hábitos, dos comportamentos. Sim, em algum momento de suas existências essas verdadeiras entidades foram pessoas de carne e osso. Que comiam e dormiam. Que, em meio a uma existência de dedicação religiosa, possivelmente tinham necessidades, medos, anseios, frustrações, desejos, fraquezas. Falhas talvez. Dilemas éticos ou morais. Ou será que não? Sim, leitor, pode ter certeza: os santos também tinha defeitos e pecados que podiam ser desde temperamentos fortes ou até uma queda pela teimosia. O que não lhes impediu de buscar o caminho redentor para a santidade.

Eu tô querendo dizer com esse preâmbulo que Benedetta Carlini, a freira católica que viveu no século 17 era uma santa demasiadamente humana? Não. Na verdade, não sei. Mas o que maravilhoso filme do versátil diretor Paul Verhoeven (autor de obras tão distintas como a ação Robocop e o drama Elle) nos faz perceber é que por trás de poderes supostamente superiores, também poderia haver uma simples mulher. Cheia de vontades, de objetivos - vocacionais ou não. Alguém que quisesse uma vida simples em meio às visões perturbadoras que lhe perseguiam. E é nessa ambiguidade permanente de Benedetta (Benedetta) que está uma das maiores forças da narrativa de Verhoeven. O tempo todo, afinal, temos dúvidas a respeito do comportamento enigmático da protagonista (vivida por Virginie Efira) que chega a um convento de Pescia, na Itália, ainda criança, após uma negociação financeira feita com a Madre Superiora Felicita (a sempre ótima Charlote Rampling).

Quando se torna adulta - a trama avança mais de uma década no tempo -, Benedetta, passa a ter visões aleatórias que envolvem ataques e outras violências perpetradas por homens, com ela sempre sendo salva por Jesus Cristo em pessoa (um Jesus sempre angelical, ocidentalizado, de vestes e de olhos claros). A situação se torna mais complicada quando chega ao convento uma certa Bartolomea (Daphne Patakia), uma jovem de origem simples que será designada como auxiliar de Benedetta em seu quarto, socorrendo-a quando ela é acometida de suas visões. Em meio a um contexto em que a peste avança, a protagonista terá a sua fé "testada" ao se apaixonar por Bartolomea - com ambas vivendo um romance proibido, caloroso e cheio de paixão. Em meio a desconfianças da Madre Felicita sobre o comportamento da dupla, o avanço das visões de Benedetta, com direito ao surgimento de estigmas no corpo, será um indicativo da manifestação espiritual de Cristo em seu corpo. O que a converterá em abadessa do local.

Baseada no livro Atos Impuros da historiadora Judith C. Brown, a obra vai no limite entre a elegância e a languidez, sem deixar de lado os componentes mais violentos, que servem para evidenciar não apenas a hipocrisia da Igreja Católica, mas como o patriarcalismo determinava os rumos da sociedade na época. Diante de acusações falsas (ou não), os limites da abnegação religiosa serão testados, em meio à aparente crença de que o misticismo dos beatos não anularia, necessariamente, os paradoxais atos questionáveis, impuros ou luxuriosos (e há, no mínimo, duas sequências envolvendo imagens de santas que considero memoráveis em sua ousadia). Apostando num caráter mais gráfico, o diretor não se furtará em exibir cenas mais fortes - eróticas, sujas, cheias de ambiguidades, de sangue, de pobreza e de doenças. Para os paladares mais conservadores, certamente a obra beirará a blasfêmia. A mesma blasfêmia da qual os superiores de Benedetta a acusariam, enquanto a devota se esforçaria para salvar a comunidade das garras predatórias de uma instituição que, até os dias de hoje, salvo raríssimas exceções, parece ser uma sede infindável de ambição e poder. E, nesse sentido, o trabalho de Verhoeven não poderia ser mais atual.

Nota: 9,0

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